Na fila do cinema, uma mãe discute com a bilheteira. Está acompanhada de duas pré-adolescentes, comprou os ingressos e insiste em entrar para ver o filme Coringa. A funcionária do cinema explica que a produção é adequada apenas para maiores de 16 anos e as meninas não podem entrar. Incrédula, a mulher tenta entender a proibição. Afinal, Coringa não é aquele vilão inimigo do Batman? Que mal haveria, então, de as crianças assistirem? A atendente explica que não é bem assim. O filme é pesado.
A mulher e as filhas não entraram, mas eu entrei. E cerca de duas horas depois, saí. Mas saí pensando que o “filme pesado” que eu acabara de assistir era perturbador não por vilanias contra super-heróis mas sim por espelhar facetas de uma realidade estranha em que vivemos, na qual a violência sofrida justifica a violência impingida, em que as pessoas perderam os mais básicos traços de empatia pelas outras, em que discursos radicais ganham espaço e a moderação é colocada em segundo plano.
Uma revolta e um caos que crescem, não sem motivos, mas com consequências imprevisíveis. O mundo atual ferve como a Gotham City, suja e corrupta, onde o ator que se apresentava como palhaço cultiva o sonho de ser famoso no mundo do stand up comedy. Acha-se engraçado, mas só consegue se destacar por um distúrbio mental que o leva a rir descontroladamente em qualquer situação em que se sinta pressionado ou nervoso, causando situações constrangedoras e incômodas.
O filme de Todd Phillips mostra a origem do mais icônico dos vilões das histórias em quadrinhos. Coringa, com sua maquiagem de palhaço e seu riso sádico, é uma construção de Jerry Robinson. Sua primeira aparição nos gibis ocorreu em 1940, um ano após o nascimento do próprio Batman, e esse inimigos íntimos percorreram um longo caminho juntos, completando-se mutuamente em seus traumas, em suas tragédias pessoais, alimentando um ao outro com fantasmas e neuroses.
Ao longo do tempo, as atrocidades de Coringa – matou um Robin, deixou paralítica a personagem Bárbara Gordon – fizeram deste palhaço ensandecido um personagem maiúsculo, o que se repetiu fora das HQs. César Romero deu um tom mais cômico na famosa série de TV dos anos 1960. O tom kitsch da produção pedia aqueles exageros. No cinema, Jack Nicholson fez história vivendo-o no filme de Tim Burton. Depois, Heath Ledger ampliou o sucesso, ganhando um Oscar póstumo com o papel.
Já fazia algum tempo que toda essa vilania merecia uma produção solo. E ela veio em grande estilo, protagonizada por um inspirado Joaquin Phoenix, que está irretocável em sua composição que, de alguma maneira, o humaniza. Mas qual tipo de ser humano temos como saldo? Certamente um homem que parece inofensivo no início, mas que é capaz de fazer qualquer coisa, sempre se justificando com os sofrimentos pregressos, sempre se olhando em espelhos, num claro aceno narcísico.
Sim, antes de se entregar ao mal, Coringa é vítima de todo tipo de agressão, violência e discriminação. Apanha de uma gangue de menores, é sacaneado pelo patrão e por colegas de trabalho, ignorado por vizinhos, vê sua mãe alimentar uma esperança vã e por fim descobre uma história cabulosa sobre seu passado. Todo esse caldo de infortúnios faz com que o homem desprezado faça aflorar seu potencial mais perverso e das formas mais inomináveis. Coringa nasce, assim, de forma um tanto previsível.
A condução do filme, porém, contorna esse problema. E mais que isso, a produção nos transporta para fora dela e nos convida a olhar o mundo à nossa volta. Não estamos rumando para um abismo parecido com aquele que vemos em Gotham? Não estamos alimentando potenciais Coringas com nossa falta de políticas públicas para os mais pobres, com nosso desprezo com quem vive na miséria, com nossa indiferença com quem nos é diferente? Os mascarados estão surgindo, ou não estão?
Gotham City parece Santiago e seus protestos monstruosos; parece Barcelona e seu afã de independência; parece com Hong Kong e sua sede de liberdade; parece Paris e seus coletes amarelos; parece com o Brasil de alguns anos atrás e cujas manifestações evidenciaram a polarização do País. Portanto, Coringa nos avisa que a realidade pode estar mais próxima da distopia que vemos no cinema, com os riscos que corremos de mergulharmos em caos, em pântano geral, em violência gratuita.
Dizem que rir é bom, mas rir de tudo é desespero. Coringa personifica essa máxima, lembrando-nos também que justiçamento não é justiça, ainda que muitas pessoas gostem de assistir vinganças frias e sangrentas. O que não falta no filme é esse tipo de violência, que pode até parir vilões, mas não resolve os problemas. Alguém pode dizer: calma, é só um filme. Sim, é só um filme, um personagem fictício. Filme e personagem que ganham tamanha reverberação porque, talvez, falem muito da vida real.
Muitas homenagens
Se Joaquin Phoenix ganhar o Oscar por sua atuação em Coringa, não será um prêmio injusto. Seu trabalho é impecável e a construção de um personagem tão complexo, que vive numa montanha-russa de sentimentos e reações, é para lá de elogiável. Mas é preciso destacar também que vale a pena assistir ao filme não só pela grande performance do protagonista. A produção tem outros atrativos, que passam pela direção segura e pelas numerosas homenagens que ela faz a clássicos.
Algumas tomadas remetem diretamente a Coringas anteriores. Na famosa dança na escadaria, impossível não lembrar de outra coreografia parecida feita por Jack Nicholson em seu Coringa, de Batman, de Tim Burton. Em outro momento, dentro de uma viatura policial, o personagem parece repetir uma cena de Heath Ledger com seu Coringa de O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan. Chegamos a ter a impressão que Phoenix e Ledger se amalgamam de alguma forma naquele instante.
Para além das referências mais óbvias – como o repeteco de uma cena em um beco com a família Wayne que também já vimos no filme pioneiro de Burton com o personagem Batman –, há outras, mais sutis. Uma delas aponta para O Iluminado, de Stanley Kubrick. O prédio onde o Coringa mora com sua mãe e as dependências do Asilo Arkham possibilitam recordar aquele hotel maldito habitado por assombrações que enlouqueceu Jack Nicholson – olha ele de novo!
A profundidade das tomadas, em que parecemos mergulhar no cenário, o cuidado do enquadramento milimetricamente acertado também são Kubrick puro. O mesmo podemos dizer das referências a Martin Scorsese, como as cenas filmadas de baixo para cima, mostrando os queixos dos personagens – algo também muito presente nas obras de Quentin Tarantino – e as execuções à queima-roupa quando menos esperamos, que têm o DNA do diretor de Taxi Driver e Os Infiltrados.
Também merece menção a presença luxuosa de Robert De Niro, em um papel pequeno, mas marcante. A melhor e mais complexa cena do filme é justamente o embate entre o personagem de De Niro, um insensível e hipócrita apresentador de TV, e o Coringa. Na verdade, o embate entre duas visões de mundo, duas realidades muito distintas, entre dois mosaicos de defeitos e vícios diferentes. E ainda há Chaplin, na exibição de Tempos Modernos e na trilha sonora com a canção Smile. Riso e tristeza pelos novos tempos? Se for, Coringa maquiou-se para representar justamente isso.
Sinceramente estou em dúvida entre a arte do filme e a arte dos comentários. Vi o mundo em ambas. Tudo é uma questão de ponto de vistas.