No dia 17 de novembro de 1869, a primeira edição de A Educação Sentimental, de Gustave Flaubert, era posta à venda nas livrarias pelo editor Michel Lévy. Aproveitando a oportunidade, celebramos neste mês de novembro de 2019 exatos 150 anos desta publicação considerada um clássico da literatura universal. O autor confidenciou a Srta. Leroyer de Chantepie, em carta datada de 6 de outubro de 1864, que o romance – rotulado como um “livro pesado”, cujo enredo contém minuciosamente os costumes da alta sociedade parisiense – demorou cinco anos para ser concluído. “Será a história moral dos homens da minha geração; a história sentimental, para ser mais exato”, declara Flaubert, afirmando tratar-se de uma obra de amor, “de paixão; mas de paixão como pode existir hoje, isto é, inativa.”
É impossível negar o perfil detalhista do autor à proporção que vamos lendo na sequência dos capítulos a descrição dos ambientes – característica típica do gênero realista. O relato conduz o leitor a imaginar aquilo que pudesse existir de mais concreto na cena ou no cenário descritos; desde as paisagens até as relações sociais da burguesia francesa do século XIX. Contudo, é preciso certo cuidado a fim de evitarmos comparações desmedidas com outras produções literárias, afinal a personagem Frédéric Moreau não tem características tão semelhantes às de outros protagonistas consagrados, a exemplo do ambicioso Rastignac, de O Pai Goriot, ou de Wilhelm Meister, de Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister. Apesar das diferenças, jamais menosprezaria as sutis influências desde Goethe a Balzac na criação de Flaubert. Frédéric pode não ser exatamente o jovem graduando de direito balzaquiano, mas apresenta traços obstinados como os de De Marsay, de A Menina dos Olhos do Ouro; pode ser considerado bem abaixo do virtuosismo cênico de Wilhelm Meister, mas existe uma melancolia próxima do romântico Werther, de Os Sofrimentos do Jovem Werther.
Educação Sentimental é também um romance de formação. Acontecimentos que esboçam as ilusões do passado, as impaciências contidas na paixão e a falência dos sentimentos. Sim, uma obra sobre as experiências fracassadas das relações heteroafetivas. Uma narrativa sobre os espíritos desiludidos, de seres destituídos de vontade, vendo as aspirações dos ternos sentimentos serem terrivelmente obstacularizadas pela necessidade constante da afirmação social em nome de cargos elevados, do status social e do ganho fácil e rápido de dinheiro. Vale a explicação de Max Weber sobre o significado do termo “status”, definido por prestígio social atribuído a determinado estilo de vida comumente aceito numa época. Logo, a riqueza não bastaria, pois também se cobravam o pertencimento e a afirmação dentro da alta roda de funcionários públicos, banqueiros, industriais ou do renomado corpo burocrático da monarquia francesa – eis o resumo moral da história dos homens da geração de Flaubert.
Quanto ao quadro decadente da elite francesa, notamos algo de semelhante às críticas do jovem Nietzsche à modernidade, conforme tratado em suas Considerações Extemporâneas. Segundo o filósofo alemão, há entre a classe burguesa um misto de erudição e futilidade, o que a torna incapaz de compreender os aspectos essenciais da própria vida. O filósofo declara improvável a geração de homens superiores, com o poder de se autogovernarem, quer seja em Paris, quer seja em qualquer outro canto da Europa. Típicos filisteus da cultura que inviabilizam a pulsão artística dos seus sentimentos dos mais sublimes até os mais vorazes – Frédéric tornar-se-ia vítima desse insucesso. Alguém preso ao painel social do seu tempo, submetido sem escapatória às circunstâncias utilitárias e medíocres, tendo, dessa forma, que aprender a superar a imaturidade dando lugar ao cinismo, à indiferença e à ganância.
Para alguns leitores, Frédéric seria a evocação de Flaubert, tal como a personagem Emma, de Madame Bovary. Do mesmo modo, a personagem da senhora Arnoux foi inspirada na senhora Schlésinger, mulher por quem o autor francês cultivara profunda paixão desde jovem – o único verdadeiro amor da sua vida. Se, por um lado, inferimos do romance o fidedigno relato da comprovação de insucessos e de humilhações sentimentais nada raro na vida de muitos apaixonados, por outro, acompanhamos o ambiente político organizado pela juventude, culminando na Revolução de 1848. Artistas e intelectuais republicanos que carregavam na força e na inteligência a motivação suficiente para lutarem por seus intentos, embora mal-sucedidos na capacidade de darem forma aos seus ideais.
A despeito da atmosfera sombria do romance, é preciso reconhecermos nele ensinamentos a serem absorvidos. Homens como Frédéric Moreau fracassarem devido à realidade notadamente diferente daquela que sonharam. Então resta-nos a pergunta: haveria algum remédio minimamente capaz de sublimar as dores do mundo real? A saída deve estar no desprezo às tentações mundanas da ambição e da ganância, buscando refúgio na arte. A propósito, Theodor Adorno promove uma interessante linha de interpretação na qual entende A Educação Sentimental vista enquanto uma verdadeira “força produtiva estética”. Caso aceitemos que o mal seja indissociável da existência humana e, por isso, a ambição derive da vontade cega da natureza, poderíamos também concluir que o sofrimento é decorrente das ações desmedidas e, dessa forma, nos autoeducar esteticamente. Sofrer de amor, portanto, tem função pedagógica, levando-nos a criar ou ao mesmo apreciar as mais belas telas; escrever ou mesmo ler e declamar lindos poemas; compor ou simplesmente ouvir e chorar perante a beleza das várias canções ou tragédias. É o jeito encontrado na esperança de não sermos destruídos pelas desilusões do amor.