A pergunta é velha: a palavra poética representa o mundo objetivo? Ou as coisas do mundo, quando nomeadas literariamente, nos dão apenas uma ilusão de referencialidade? Gosto da imagem proposta por Susan Sontag: “Palavras são flechas. Flechas cravadas na pele dura da realidade”.
Vejam essa “cravada” da Chimamanda Ngozi Adichie: Jumping Monkey Hill, conto presente no livro No seu Pescoço (2017), narra a história de um workshop de criação, prática em voga na “república mundial das letras”. O workshop reúne uma sul-africana de Durban, um sul-africano de Arusha, um ugandês de Entebe, uma zimbabuense de Bulawayo, um queniano de Nairóbi, uma senegalesa que estuda em Paris e uma nigeriana de Lagos. O texto adota a linguagem tradicional do realismo, com minuciosas descrições de ambiente e de personagens. A forma como o realismo é empregado no conto, no entanto, em vez de fazer passar convenção por natureza, ou seja, em vez de fingir uma relação direta entre linguagem e realidade, denuncia exatamente os modos como, não existindo uma concepção única de literatura ou mesmo de realidade, produzem-se equívocos, distorções e, principalmente, violência.
Começando pelas primeiras coisas, como gostava de fazer Aristóteles: o lugar escolhido para a realização de um encontro entre escritores africanos foi um resort nos arredores da Cidade do Cabo, África do Sul. Um lugar onde turistas brancos gostam de ir para reforçar a visão colonial de servidão negra e cenário exótico. A escolha do lugar fora feita, sintomaticamente, pelo organizador do workshop, Edward, de origem inglesa, “autoridade” em literatura africana, o que ele mesmo denomina de “causa pessoal”.
O tom de crítica a essa postura ao mesmo tempo racista e salvacionista, típica de uma mentalidade colonizadora, é produzido e é sentido pelo leitor porque um narrador em terceira pessoa se aproxima muito da personagem Ujunwa, a escritora de Lagos. A história é narrada pelo olhar, filtrada pelas interpretações, afetada pelos sentimentos dessa escritora nigeriana negra, jovem e desempregada. Há, inclusive, uma descrição de ambiente em que o narrador toma Ujunwa como medida: “O candelabro do salão de jantar principal de Jumping Monkey Hill era tão baixo que Ujunwa conseguiria tocá-lo apenas estendendo a mão”.
Gosto de observar ou perseguir quem conta/narra e como faz isso. Uma das críticas ao estilo realista baseia-se no fato de que seus adeptos escolhiam uma terceira pessoa neutra, forjada por uma escrita tão impessoal, que o leitor teria sempre a impressão de que a história se conta a si mesma, e assim só poderia ser verdadeira. Como já disse o professor Davi Arrigucci Jr., “a escolha da técnica, do ponto de vista, nunca é inocente”. Sem abrir mão da narração em terceira pessoa, Chimamanda constrói um enredo colado à perspectiva de uma personagem cuja concepção de criação literária permite que ela funcione como voz de contestação daquilo que supostamente tem poder de tradição (europeia e ocidental). Seu antagonista é o personagem Edward, apresentado como uma figura amorfa e decrépita. A imagem de dentes mofados gruda na lente do leitor, e constitui uma metonímia perfeita para a noção de “Velho Mundo”, de onde Edward vem para financiar duas semanas de escrita criativa num resort, prometendo publicação e circulação dos textos e de seus autores.
O conflito entre Edward e Ujunwa instaura-se desde o princípio, quando ele a busca no aeroporto, e segue ganhando densidade na medida em que se encontram. No primeiro jantar que reúne o grupo, ela rejeita a sugestão do medalhão de avestruz feita pelo anfitrião/patrão dizendo que “nem sequer sabia que as pessoas comiam avestruz” ao que Edward responde, reforçando a imagem de europeu colonizador que apaga toda diferença para reinar com distinção, “é claro que avestruz era um prato típico da África”. Some-se a isso o assédio sexual imposto por ele às escritoras jovens, situação que Ujunwa denuncia aos colegas, e temos uma pintura do legado da cultura imperialista.
A disputatio mais importante entre Edward e Ujunwa acontece na sequência em que os contos encomendados são lidos coletivamente. Na verdade, apenas quatro contos são apresentados.
A primeira narrativa, escrita pela zimbabuense, é sobre “um professor de ensino médio de Harare que frequenta uma igreja pentecostal e ouve de seu pastor que ele e a esposa não terão filhos até conseguirem obrigar as bruxas que amarraram o útero de sua mulher a confessarem o que fizeram”. Edward, “o especialista em literatura africana”, diz que o conto é datado – o tema da intolerância religiosa, bem como das “crendices” próprias de culturas não cristianizadas, não faria frente aos problemas políticos e sociais vividos no Zimbábue contemporâneo sob o governo de Mugabe. Trata-se de uma crítica bem ao gosto dos africanistas (é sempre bom lembrar o que Said chama de Orientalismo) que, no intuito altruísta de contribuir com a emancipação de ex-colônias, sentem-se no direito de dizer o que é mais “atual” ou “urgente” para a agenda do grupo que “escolheu” estudar e defender.
Na sequencia, Edward descarta o conto escrito pela jovem senegalesa lésbica estudante em Paris porque “histórias homossexuais daquele tipo não refletiam a África de fato”. Dessa vez, o critério do realismo fica mais explícito: a literatura africana tem que oferecer um reflexo de sua realidade. Nesse momento, Ujunwa reage perguntando “Que África?”, com o que denuncia o tratamento homogeneizador do “especialista”.
O terceiro conto, escrito pelo autor tanzaniano, é o único elogiado por Edward, porque narra e descreve “os assassinatos no Congo, contado do ponto de vista de um miliciano, um homem imbuído de uma violência lasciva”. A narração em primeira pessoa produziria um teor testemunhal da miséria e da violência, transformadas mais uma vez em exotismo. Sabemos disso porque, junto à opinião de Edward, ficamos informadas de que Ujunwa achou o texto mais parecido com uma reportagem ilustrada por charges. Vale lembrar que uma das características da charge é o exagero no seu sentido caricatural, ou seja, estereotipado.
Por fim, acontece a leitura do conto da própria Ujunwa. Conto que acompanhamos mais de perto, conhecendo-o quase na sua inteireza, uma vez que ele é transcrito para o leitor. Configura-se assim uma espécie de narrativa em moldura, um mise en abyme narrativo, em que um pequeno conto surge dentro da narrativa maior e com ela dialoga, ganhando complexidade. A história de Chioma inspira-se na própria vida de Ujunwa, mas apenas o leitor sabe disso. A opinião de Edward continua fundada na velha noção de realismo: “Nunca é assim na vida real, não é?” Dessa vez, ele é apoiado pelo escritor queniano que cobra plausibilidade do desfecho da história: como uma mulher negra desempregada teria aberto mão do emprego? Supõe-se aqui a subalternidade como lógica de vida. Mas Edward ainda diz que o conto inteiro não é plausível, acusando sua literatura de ideológica.
E a cobrança feita anteriormente à escritora do Zimbábue, acerca da ausência dos problemas políticos e civis de sua terra natal, não seria ideológica? O elogio ao conto do tanzaniano também não estava calcado em um argumento ideológico? A principal discussão do conto seria, nessa perspectiva, quem pode dizer o que é literatura. E, num desdobramento, que respostas para a relação entre literatura e mundo cada autora, cada autor oferecem quando escrevem seus textos?
Para a concepção “realista” de Edward, que exige histórias sobre “gente de verdade” – desde que surjam como gladiadores no contexto das lutas e guerras civis por emancipação nacional –, Ujunwa responde com sua biografia, afirmando assim que a vida nem sempre tem plausibilidade. Contrariando Aristóteles, o inverossímil, infelizmente, acontece – ela poderia dizer. A concepção de criação apresentada pela personagem-escritora deixa-se ler explicitamente na pequena discrepância entre a saída de sua personagem Chioma da casa do Hadj e o seu relato pessoal, supostamente empírico, menos admirável, mais contraditório.
Nesse trecho o narrador em terceira pessoa de Chimamanda afasta-se da personagem e a deixa falar por si, criando com essa distância algumas possibilidades de conclusão: ninguém sai vitorioso ou incólume dos jogos de poder; não há concepção única ou correta de literatura, mas há concepções hegemônicas; mesmo no mais simplório realismo, quem pode apontar com segurança os limites entre realidade e criação? Solicitando mais uma vez a presença de Susan Sontag: em literatura, “o que quer que exista, existe sempre mais. O que quer que esteja acontecendo, algo mais está acontecendo também”.
Texto maravilhoso! Super recomendo. A escritora dialoga com o leitor de forma sensacional, ela tem um estilo bem acessível e uma escrita única,que vale a pena apreciar.