“Havia acontecido algo que agora não entendemos totalmente e que terei de explicar, mas algo facilmente compreensível.” A advertência que replico remete ao Curso de Literatura Inglesa de Jorge Luis Borges, reunião de aulas ministradas em Buenos Aires, e fatalmente refere-se à celeuma protagonizada por James Mcpherson e seus poemas de Ossian na segunda metade do século XVIII.
A fim de encurtar razão, Ossian foi um bardo gaélico, isto é, celta, um ancestral dos escoceses, cuja vida desenrolou-se no século III. Como bardo, figura encarregada de transmitir histórias, mitos de seu povo para a posteridade, cantou as proezas de seu pai, Fingal, que se tornaria rei e herói e as de seus companheiros. A obra ossiânica, pois, foi divulgada pelo escocês James Mcpherson, natural das Terras-Altas e conhecedor do idioma gaélico, embora apenas oralmente. Mcpherson apresentou-a como traduções de sua autoria de manuscritos antigos e cantares bardos recolhidos durante pesquisas de campo a que se dedicara nas serras da Escócia, mediante o mecenato de intelectuais (destaca-se Hugh Blair) interessados na existência (ou criação) de uma epopeia nacional.
Rapidamente instalou-se, em toda a Europa, com inédito vigor, o ossianismo, cuja assimilação representa fator decisivo para o estabelecimento do movimento romântico. Os poemas de origem gaélica vertidos para o inglês corrente, primeiramente publicados em 1760, cujo cânone compõe-se de 20 textos líricos e dois épicos, encantaram as mais notáveis e diversificadas autoridades. Johann Wolfgang von Goethe, por exemplo, diz, por meio dos Sofrimentos do Jovem Werther, que “Ossian tomou o lugar de Homero no coração” de seu protagonista. Naturalmente, informo que o bardo tornou-se reconhecido como “Homero do Norte”. Napoleão Bonaparte, de mesma forma, elege-o seu poeta preferido e desenvolve-se a lenda de que seus poemas estavam sempre na cabeceira do general francês em campanhas militares. Os exemplos ao redor do continente são próximos de inesgotáveis, portanto os que cito são aqueles celebríssimos.
Com efeito, Ossian passa à história da literatura como elemento de primeira importância do pré-romantismo, e mesmo faz as vezes de um proto-romântico, conforme demonstrarei. Ou, tanto melhor, a Mcpherson deve caber, em última análise, essa alcunha, porque instaurou-se logo a querela relativa à autenticidade da obra ossiânica e foram muitas as suas motivações. Bem pontua Ofir Bergemann de Aguiar, em Ossian no Brasil, que, em um momento histórico de afirmações nacionalistas e busca por criações populares, “Encontra-se, nos motivos políticos e preconceitos nacionais, grande parte das causas dessa controvérsia. A rivalidade entre escoceses e ingleses […] não permitia que estes admirassem o êxito prodigioso do escritor escocês. A Irlanda, por outro lado, acusava os escoceses de estarem roubando seu herói nacional, pois, como ficou comprovado posteriormente, Fingal […] foi chefe das milícias irlandesas”. Entretanto, Bergemann assinala que “O argumento mais repetido contra a autenticidade sustentava que tais poesias, que expunham sentimentos tão puros e ideias tão nobres, não poderiam ser encontradas em povos primitivos. Alguns defensores, em contrapartida, utilizavam-se dos poemas ossiânicos como fundamentação nas suas discussões sobre o ‘bom selvagem’”. Por outra análise, é sabido que James Mcpherson protelou a publicação dos supostos manuscritos ossiânicos originais a ponto de tornar a questão sobremaneira obscurecida.
De qualquer modo, convém dizer, como Borges, que “Atualmente, não nos interessa se o poema é ou não apócrifo, mas o fato de que nele já está prefigurado o movimento romântico” e, sem Mcpherson, ele quedaria bastante diferente em suas principais características.
A obra ossiânica, a partir desse aspecto, salvaguarda um rol de caracteres distintivos cujo reconhecimento é importante, e aqui os apresento. Em primeiro lugar, quanto à forma, James Mcpherson verteu os textos gaélicos para uma prosa ritmada inédita até então, alegando que versos não satisfaziam a tradução, que é precursora da “prosa poética” romântica tão em voga no século seguinte e, forçoso aceitar, como também quis Borges, da utilização do verso livre à maneira de Walt Whitman. O ritmo mencionado é alcançado graças ao recurso da repetição, caro aos poemas de Ossian, sendo necessário ressaltar o uso de linguagem simples, frases curtas em inglês comum à época (residindo aí um dos motivos da propagação do ossianismo). Em segunda análise, relativa ao conteúdo, o conjunto ossiânico trata de temas trágicos e sentimentais, fazendo de sua paisagem sempre um locus fúnebre, noturno, brumoso, onde a solidão melancólica impera. Estão invariavelmente presentes as evocações aos astros e a devoção à natureza, realizadas a partir de símiles e epítetos. Também é fundamental atentar ao primitivismo despertado pelo ossianismo a partir da defesa do “mito do bom selvagem” anteriormente aludida, em que acredita-se o homem mais nobre e perfeito quanto mais primitivo e alheio à sociedade. Isso aponta ainda, conforme comentei, à busca de heróis em um momento de afirmação e formação das nações.
Ora, se o leitor deteve atenção ao que acima foi dito, notou com clareza a predeterminação de várias das características mais caras ao romantismo da maneira que tornou-se conhecido. Efetivamente, Ossian é citado, assimilado, traduzido e discutido por diversos dos maiores representantes franceses, ingleses, italianos, alemães, russos do movimento (ao que en passant remeti), tamanha a propagação e influência de seus poemas. Em verdade, sua presença é percebida também com força no Brasil. Bergemann, mais uma vez, no aludido Ossian no Brasil, destrincha a ligação direta do bardo escocês com Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, José de Alencar e Castro Alves, nomes figurantes na vitrine mais representativa do romantismo destas terras. A leitura da obra fica recomendadíssima.
Mas a literatura opera curvas e não trata-se apenas de nomes consagrados. O que proponho, aliás, é a análise comparativa, em via de denotar traços ossiânicos, de um poema do grande autor romântico de Goiás, Félix de Bulhões, a fim de dar exemplo da extensão influente da obra proposta por Mcpherson em um poeta pouco (ou nada) atrelado ao cânone.
À guisa de complemento biográfico, Antônio Félix de Bulhões Jardim, nascido em 1845, teve voz ativa no meio intelectual de Vila Boa, então capital goiana, onde foi juiz de direito, jornalista e poeta. Embora enxuta (mesmo porque falece cedo, em 1887), sua obra é riquíssima, seja rigorosamente romântica, seja sui generis, como mostram alguns textos humorísticos ou regionalistas. Esse ouro de bom quilate preserva-se no volume Poesias, lançado pouco tempo depois da morte do autor e reeditado em 1995, por ocasião de seu sesquicentenário.
O poema de que tomo nota, escrito em 1885, intitula-se Só e está disponível na íntegra, para melhor leitura, abaixo. A dimensão solitária a que aponta o título, percebemos logo na primeira estrofe, faz-se presente em todo o texto: “Parei; sentei-me só à beira do caminho,/ Sentei-me ali sozinho,/ Eu só, sem mais ninguém.”
Este sem mais ninguém configura um estribilho repetido ao final de todas as estrofes, razão de sensação de opressora solidão. Ora, tanto o recurso da repetição quanto a melancolia solitária são caracteres particularmente ossiânicos legados aos seus influenciados. Não trato aqui de afetação comparativista, mas é bastante provável que Félix de Bulhões tenha indiretamente referido-se a Ossian (não encontrei em sua obra propriamente citações diretas) ao tomar para seu texto as características de que falo a partir da leitura de outros autores, basta atentar ao rol de nomes importantes do romantismo que possuem estreita ligação à obra do bardo gaélico. A paisagem a que alude Bulhões é fúnebre e brumosa, obscura e condicionante de medo e desacerto sentimental: “Além a névoa densa, a dúvida insegura,/ Além a bruma escura,/ Eu só sem mais ninguém.” A montanha é “aspérrima e tamanha”, como a exigir reverências.
Está posta a paisagem dos poemas ossiânicos.
A fim da realização do cotejo proposto, apresento um dos trechos mais célebres do bardo gaélico, Lamento de Colma, vertido ao inglês por Mcpherson, que enreda o momento em que Colma, apaixonada por Salgar e ambos em via de se encontrar no meio da noite e da floresta para fugir, o encontra morto ao lado de seu irmão, igualmente sem vida, após uma batalha, vez que suas famílias são inimigas. Colma, à espera de seu amor, senta em uma colina, como o eu lírico de Bulhões, onde ecoa sua solidão: “Colma left alone on the hill, with all her voice of song! […] Hear the voice of Colma, when she sat alone on the hill.” Na voz da própria personagem, “I am alone, forlorn on the hill of storms […]. No hut receives me from the rain; forlorn on the hill of swinds!”; “But here I must sit alone, by the rock of the mossy stream. The stream and the wind roar aloud.” É forçoso atentar às repetições que cadenciam o texto ossiânico. A repetição de “forlorn on the hill”, “alone”, “here I must sit alone” no trecho funciona semelhantemente, em função e conteúdo, pois trata-se de afirmação solitária, ao estribilho do poema romântico goiano. Também está presente a paisagem fúnebre, tempestuosa, brumosa, a colina musgosa (conforme a montanha aspérrima do outro texto) e as rochas onde Colma deve sentar à beira de um córrego.
O Lamento de Colma também encontra-se abaixo, para melhor apreciação.
À maneira de Borges, busquei explicar uma questão controvertida que culmina em algo compreensivo. Isto é, o percurso da querela relativa à autenticidade de Ossian aos influenciados mais distantes possíveis. O bardo gaélico e Félix de Bulhões são donos de obras magníficas, cuja intersecção, ainda que indireta, mas representativa, tentei demonstrar nestas linhas.
Só
(Félix de Bulhões)
Parei! — chegado havia ao cimo da montanha
Aspérrima e tamanha —
O sol morria além!
Parei; sentei-me só à beira do caminho
Sentei-me ali sozinho,
Eu só, sem mais ninguém.Olhei atrás e avante. — Os largos horizontes
Debruçavam-se nos montes.
E longes, por além,
De branco e azul e fogo e púrpura toucados,
Diziam contristados,
“Tu só, sem mais ninguém.”Percorro o estádio feito em um só lance d’olhos
Sem contar os abrolhos,
E muito, muito além,
Nas veigas serpeava o trilho venturoso,
Que eu correra ditoso,
Eu só, sem mais ninguém.Atrás deixava o prado, a vida, a flor, o aroma,
E o doce amor que assoma
Na juventude. Além,
Além a névoa densa, a dúvida insegura,
Além a bruma escura,
Eu só, sem mais ninguém.Avante a escarpa está de crua descambada,
Precípite e eriçada,
Um passo mais além,
Eu vou com passo firme, e resoluto e certo
Para o eterno deserto,
Eu só, sem mais ninguém.
Lamento de Colma
(Ossian)
Minona came forth in her beauty: with downcast look and tearful eye. Her hair flew slowly on the blast, that rushed unfrequent from the hill. The souls of the heroes were sad when she raised the tuneful voice. Often had they seen the grave of Salgar, the dark dwelling of white-bosomed Colma. Colma left alone on the hill, with all her voice of song! Salgar promised to come: but the night descended around. Hear the voice of Colma, when she sat alone on the hill.
COLMA. It is night, I am alone, forlorn on the hill of storms. The wind is heard on the mountain. The torrent pours down the rock. No hut receives me from the rain; forlorn on the hill of winds!
Rise, moon! from behind thy clouds. Stars of the night, arise! Lead me, some light, to the place where my love rests from the chase alone! his bow near him, unstrung: his dogs panting around him. But here I must sit alone, by the rock of the mossy stream. The stream and the wind roar aloud. I hear not the voice of my love!Why delays my Salgar, why the chief of the hill, his promise? here is the rock, andhere the tree! here is the roaring stream! Thou didst promise with night to be here. Ah! whither is my Salgar gone? With thee, I would fly from my father; with thee, from my brother of pride. Our race have long been foes; we are not foes, O Salgar!
Cease a little while, O wind! stream, be thou silent awhile! let my voice be heard around. Let my wanderer hear me! Salgar! it is Colma who calls. Here is the tree, and the rock. Salgar, my love! I am here. Why delayest thou thy coming? Lo! The calm moon comes forth. The flood is bright in the vale. The rocks are gray on the steep, I see him not on the brow. His dogs come not before him, with tidings of his near approach. Here I must sit alone!
Who lie on the heath beside me? Are they my love and my brother? Speak to me, O my friends! To Colma they give no reply. Speak to me; I am alone! My soul is tormented with fears! Ah! they are dead! Their swords are red from the fight. O my brother! my brother! why hast thou slain my Salgar? why, O Salgar! hast thou slain my brother? Dear were ye both to me! what shalt I say in your praise? Thou wert fair on the hill among thousands! he was terrible in fight. Speak to me; hear my voice; hear me, song of my love! They are silent; silent for ever! Cold, cold, are their breasts of clay! Oh! from the rock on the hill, from the top of the windy steep, speak, ye ghosts of the dead! speak, I will not be afraid! Whither are ye gone to rest? In what cave of the hill shall I find the departed? No feeble voice is on the gale: no answer half-drowned in the storm!
I sit in my grief; I wait for morning in my tears! Rear the tomb, ye friends of the dead. Close it not till Colma come. My life flies away like a dream: why should I stay behind? Here shall I rest with my friends, by the stream of the sounding rock. When night comes on the hilt; when the loud winds arise; my ghost shall stand in the blast, and mourn the death of my friends. The hunter shall hear from his booth. He shall fear but love my voice! For sweet shall my voice be for my friends: pleasant were her friends to Colma!