Dois Papas, filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles e que pode ser visto no serviço de streaming Netflix, é um trabalho com alguns problemas – eles estão mais ligados a gostos pessoais, como uma suposta agilidade excessiva da edição – e numerosas virtudes. As mais óbvias saltam aos olhos. O enredo conta os bastidores da eleição do cardeal alemão Joseph Ratzinger para o lugar de João Paulo II, em 2005, e sua renúncia, já como papa Bento XVI, em 2013, abrindo espaço para a escolha do argentino Jorge Bergoglio, o papa Francisco. É bem amarrado, seguro e tem ritmo.
Isso é fundamental para o êxito do filme, que é composto, basicamente, por diálogos inspirados entre os dois religiosos, em severos embates a respeito de visões teológicas discordantes, que dizem respeito, em última instância, ao futuro da própria Igreja Católica. Textos exuberantes interpretados com brilhantismo por dois veteranos. Anthony Hopkins vive um amargurado e envelhecido Bento XVI, mas ainda afiado no debate. Jonathan Pryce é Francisco, dando o tom certo ao seu humor e suas culpas.
Sim, culpas. Ambos os pontífices as têm em profusão e é nesse aspecto que Dois Papas dá seu pulo do gato, surgindo como um dos indicados a melhor filme para o Globo de Ouro e candidato a concorrer a estatuetas no Oscar 2020. Os escândalos que cercaram o Vaticano no pontificado de Bento XVI – incluindo acusações de orgias, de desvios de recursos financeiros e acobertamento de abusos de menores – erodiram os planos de um papa conservador que havia vencido uma batalha contra os progressistas no Conclave.
Por outro lado, o passado de Francisco, sobretudo no período da ditadura argentina nos anos 1970 e 1980, é uma mácula em sua consciência. O filme é muito corajoso e contundente em apontar seus terríveis erros naquele momento, colocando em risco seus irmãos jesuítas, ordem religiosa que incomodava os militares portenhos, o que acarretou até perdas pessoais ao próprio Bergoglio. É um choque saber de detalhes do que aconteceu, de perceber que suas atitudes foram tão questionáveis, que ele foi fraco e conivente em tais contextos.
O filme serve não para demonizar as fraquezas de um papa no passado e as fraquezas de outro no presente. Ainda que o tratamento tradicional ao Sumo Pontífice seja Santo Padre, nenhum deles é santo, como ninguém o é. Em certo momento, Bento XVI diz a Francisco: “Nós representamos Deus, mas não somos Deus. Somos humanos e erramos”. Em outro, ele admite: “Peco o tempo todo contra Deus”. Uma sinceridade que não o fará arredar de suas convicções, mas a lidar com seus fantasmas pessoais.
Em plena Capela Sistina, sob os maravilhosos afrescos de Michelângelo, no lugar onde os papas são eleitos, eles trocam confissões informais e também sacramentais e se colocam, cada qual, em suas respectivas posições, admitindo mudanças, identificando debilidades, tentando, juntos, encontrar suas respostas, orientarem-se mutuamente, buscar melhores saídas para os desafios que têm pela frente. Duas personalidades muito distintas e que até guardam certa hostilidade entre si, mas que encontram, via diálogo e franqueza, um denominador comum, um grau maior de empatia.
Dizer que o filme se resume a uma dicotomia entre esquerda e direita, entre conservadores e progressistas, entre linhas ideológicas divergentes é injusto com o trabalho de Meirelles e um sintoma claro da superficialidade tão em voga com as redes sociais. Essa visão redutora não reconhece o que a obra tem de melhor, que é a intensa humanidade que exala dos dois protagonistas, de suas dúvidas, de suas frustrações, de seus defeitos e suas virtudes. São, acima de tudo, dois homens.
Dois homens poderosos, mas que padecem da solidão, das responsabilidades, dos remorsos que os acompanham em suas posições. Homens que trazem consigo um poder simbólico gigantesco que desperta veneração e ódios. Dois homens que em longos diálogos se abrem e até se recordam das pessoas comuns que um dia foram, que tocavam piano ou que dançavam tango. Na cena em que assistem à final da Copa do Mundo do Brasil, entre Argentina e Alemanha, vemos dois torcedores trocando provocações ternas. Dois papas, mas ainda dois homens.