Ao final do diálogo A República, Platão narra o mito de Er, sobre a distribuição das recompensas e punições aos seres humanos após a morte, de acordo com as boas ou más ações que praticaram em suas vidas terrenas. Er é um guerreiro ferido mortalmente em batalha, que volta à vida 12 dias depois e conta às pessoas o que sua alma testemunhou enquanto vagava pelos mundo dos mortos. Segundo a narrativa, após um ciclo em que purgaram no inferno pelos malfeitos ou desfrutaram no céu por suas virtudes, as almas têm a chance de recomeçar uma nova existência na Terra. A elas, é dado escolher que tipo de vida querem ter, como animais ou humanos. Na pele destes últimos, podem ainda optar por uma jornada de opulência ou pobreza, de grandes feitos ou obscura, com todas as consequências positivas e negativas que tal escolha acarreta.
Er depara-se com as almas de grandes guerreiros, que fazem seleções curiosas. Desgostoso com a raça dos homens, Agamenon prefere encarnar em uma águia. Na vida anterior, ele havia sido o glorioso rei de Micenas que liderara a expedição contra Troia, mas, ao regressar aos seus domínios, foi assassinado pela mulher, Clitemnestra, em conluio com Egisto, amante dela. Ajax, que também se destacara na batalha de Troia pela bravura, opta por ressurgir como um leão. E o ardiloso Ulysses, herói de inúmeras proezas narradas na Ilíada e na Odisseia, porém fatigado com tantos percalços e aventuras, escolhe a vida de um homem comum, apagada e tranquila.
Em meio às almas menos ilustres, uma que desce do céu (e que havia estado lá porque praticara a virtude na existência anterior não por convicção, mas porque vivera em um Estado “bem governado”) agarra-se ironicamente à alternativa mais infeliz: pega para si precipitadamente a vida de um governante tirano, iludida com o fausto e o poder que tal experiência iria lhe proporcionar. Só depois percebe o seu grande erro ao tomar consciência do destino funesto que a aguardava e cai em desespero. Entretanto, já era tarde – não havia como voltar atrás.
Mas por que a vida de um tirano é tão maldita? Porque a sina atrelada a ela, conforme a narrativa platônica, é uma sequência de desgraças. O tirano traz a infelicidade para os outros – porque age com injustiça para com seus governados, ao oprimi-los e explorá-los – e também para si próprio – sempre desconfiado de tudo e de todos, vive isolado e com medo e acaba por assassinar até os próprios filhos. Entre os deuses gregos, a representação do tirano é bem simbolizada na figura de Cronos, que devorava os filhos com receio de ser destronado por eles até que é derrotado e lançado nas profundezas do Tártaro por Zeus, o filho caçula que havia sido protegido pela mãe, Reia. Sabiamente, Zeus dividiu o poder com os irmãos Poseidon e Hades e as demais divindades do Olimpo para continuar reinando sobre homens e deuses sem temer o mesmo destino do pai.
A imagem do tirano como uma figura humana lamentável – ludibriado pelo poder passageiro que logrou conquistar barbaramente para si e vivendo aterrorizado com a perspectiva de perdê-lo, receoso até da própria sombra – é corrente na literatura política desde Platão. Conforme se lê na Ética a Nicômaco, ao tirano é vedado usufruir daquilo que Aristóteles considera um “bem supremo”: a philia, a amizade que une os cidadãos que compartilham o espaço público da pólis na condição de indivíduos livres e iguais. Para ter amigos é necessário, antes de tudo, ser amigo de si mesmo, de ter amor por si mesmo, algo que o tirano jamais pode alcançar, porque amar a si mesmo, na ótica aristotélica, requer realizar ações belas, que tragam proveito tanto a quem as pratica como aos outros. Por isso, o caráter do tirano é o que Aristóteles define como “perverso”: aquele que não pode ter nenhum amor por si, “porquanto não apenas se prejudicará a si próprio como também aos seus próximos, seguindo os seus piores instintos”.
No tratado O Espírito das Leis, Montesquieu escreve que o medo é o princípio que rege as tiranias. À primeira vista, parece uma afirmação um tanto quanto óbvia, pois o tirano só se mantém no poder na medida em que é temido por aqueles que estão sujeitos a seu domínio. Porém, é preciso entender que esse sentimento de medo a que Montesquieu se refere também atinge o tirano – faz parte da sua sina viver atormentado pelo pavor que tem daqueles a quem tiraniza, suspeitando de tudo e de todos e sempre paranoico com a sua própria segurança.
Por essa razão, o tirano, no fundo, é um impotente, porque o medo, como descreve Hannah Arendt, “politicamente falando, […] é o desespero com a própria impotência”. Afinal, todo tirano conhece a história da tirania – e sabe que ela invariavelmente nunca termina bem.
Isolamento, perversão, medo, impotência. Como invejar uma vida mergulhada por sentimentos tão ruins, que nada conhece da amizade, do amor, da solidariedade? Por isso, o destino do tirano é sempre tão funesto, como já alertava Platão. Nessa sua existência tão infeliz, o tirano só sente algum conforto quando se assegura que os vis afetos que fazem como que seu coração e sua mente nunca consigam sair das trevas são exatamente os mesmos disseminados entre os que escraviza. “Não há vício no coração que agrade tanto [ao despotismo] quanto o egoísmo: um déspota perdoa facilmente aos governados não amá-los, contanto que não se amem entre si”, afirma Tocqueville no segundo volume de A Democracia na América.
A palavra “tirano”, no entanto, nem sempre foi empregada como sinônimo de um governante mau e opressor. Como explica Junito de Souza Brandão, no volume um da sua trilogia sobre a mitologia grega, “tyrannos” significava em princípio “soberano, rei”, sem nenhuma conotação negativa. Entre os gregos, o tirano inicialmente era o nome dado ao líder político, geralmente proveniente da aristocracia, que se unia ao povo para defendê-lo contra a opressão da nobreza. No entanto, com os vários casos de tiranos que usurparam do poder que lhes foi conferido, desrespeitando as leis e agindo de forma ilegítima, a tirania passou a ser equivalente de despotismo.
Para ficar ainda com os gregos, o tirano é aquele que não respeita qualquer limite, que se deixa levar pela hybris. Personifica o excesso, a desmesura, o desequilíbrio, a megalomania, em oposição à ideia de harmonia, de justa medida, que permeia a cosmovisão na Grécia antiga. Por atentar contra essa ordem harmônica, o tirano ameaça seus semelhantes, espalha o mal onde quer que vá e ofende aos deuses. Seu fado, assim, é o opróbrio e a ignomínia, como narra a lenda de Platão – tanto na vida quanto na morte.
Fabuloso! Que análise filosófica de um ser atormentado cuja sina não poderia ser outra senão a de atormentar também. Quantos ensinamentos nos mitos e ideias dos gregos, que você tão bem, com leveza, nos proporciona.
Obrigada, querida Karla. Bjs.
Excelente análise filosófica que infelizmente retrata a nossa política atual, porque o nosso governo é representado por um tirano que não respeita a democracia e sempre exalta ditadores do passado e do presente.
Beleza de texto, Rosângela! Impressionante como os gregos disseram tudo! E os aportes que você faz dos filósofos mais recentes deixam o texto ” bem acabado”, redondo. Triste reconhecer esses traços na política brasileira!
Belo e corajoso. É preciso coragem pra lutar contra a tirania, sempre alicerçada na ignorância. Lições antigas. Pecados atuais.
Excelente texto. Percepção filosófica que reflete, de forma incisiva, a realidade do Brasil. Parabéns.
Bem acertado, gostei muito!
O tirano é tão doente que não suporta nem a perspectiva de repastos comuns, principalmente, porque por esses breves momentos de fertilidade brotam bons diálogos entre distintas pessoas; de maneira que elas possam animarem-se, e, consequentemente, destroná-lo.
Quão paradoxal é sua existência: o banimento do diálogo esconde a ineficácia da sua própria tirania!
Excelente texto.
Bora botar medo no Bolsonaro!
Organização e mobilização popular!
#ForaBolsonaroFascista