Os dois estavam deitados numa cama king size.
O homem fumava um cigarro sem demonstrar muito cuidado, deixando, por conta desse desleixo, algumas cinzas caírem sobre o lençol. A mulher, as pernas esparramadas ao longo do colchão, lia um livro cuja capa exibia a imagem de um pelicano em pleno voo.
Ambos apoiavam a cabeça em travesseiros altos, limpos e confortáveis, que exalavam aroma macio. Vistos de outro ângulo, tinham parte da cabeça iluminada pela luz que emanava de abajures laterais. Antes que a mulher terminasse a leitura do parágrafo, ele disse:
“Hoje de manhã, acordei com uma dormência enjoada no braço esquerdo…”
Retirando os olhos do livro, ela se virou para o lado em que ele se encontrava e comentou:
“Então, você tem de consultar o doutor Rossi.”
O homem deu a última tragada no cigarro e apagou-o no cinzeiro deixado sobre o criado. Depois, soprou a fumaça para o alto, liberando os pulmões de uma nuvem cinza que se perdeu aos poucos em tênues manchas próximas ao teto. Só então falou, como se principiasse uma classificação e, por vários motivos, não quisesse terminá-la:
“Esse doutor Rossi é um carniceiro, um abutre insaciável, um inseto desprezível, um sugador de dinheiro, um cara que trai os amigos…”
A mulher fechou o livro bruscamente. Indignada, mas mantendo certa classe, retrucou:
“Eu não admito que você fale nesses termos do doutor Rossi!”
O médico – que passou a ser o motivo da divergência – fora amigo de ambos. Durante o curso de graduação, quando as neuroses são instaladas de vez – essas neuroses que afinal nos acompanham ao longo da vida –, o homem flagrou a sua atual mulher numa profusão de beijos com o seu melhor amigo. Ele fingiu que não viu – e seguiu adiante, sem esquecer-se, contudo, da cena amorosa.
Se esse idílio inesperado e vulcânico não foi suficiente para separá-los, resultou ao menos danoso para o amigo Rossi. Nunca mais voltaram a se falar, nem “oi” nem “bom dia” – ele, o hoje famoso doutor Rossi, e que, no passado, nunca se cansava de pedir cola na prova de Química.
De acordo com os mexericos de certas colunas sociais, o médico atendia numa clínica que era um esplendor de modernidade e tecnologia. Além disso, como benemérito, durante a semana, dedicava algumas horas de sua sapiência aos doentes e desvalidos nos bairros degradados da cidade.
Naquele momento de tensão, procurando entender o desprezo que o seu marido nutria pelo médico, ela disse, a voz agora mansa:
“Como você sabe, e ninguém precisa confirmar o que estou dizendo, o doutor Rossi é uma pessoa decente. Tenho certeza de que ele vai cuidar de você com a maior atenção…”
Sem que ela esperasse uma reação colérica, o homem de repente apelou, palavras jorrando de sua boca impiedosa:
“A partir de hoje, não pronuncie nunca mais esse nome na minha frente! Que esse cara vá encontrar a mãe no chiqueiro onde foi parido!”
Em seguida, com gestos nervosos e teatrais, levantou-se da cama, trocou de roupa, calçou os sapatos, pegou no closet um paletó e bateu a porta do quarto. Antes de achatá-la com toda a força no portal, a mulher ainda conseguiu ouvi-lo dizer:
“Prefiro oferecer uma taça de cachaça para Exu do que me consultar com esse charlatão vagabundo.”
Depois, passado o estardalhaço, ela não conseguiu ouvir mais nada, pois ele tinha fechado também a porta da casa e saído silenciosamente pelo portão.
Lá fora, naquele momento crucial de incertezas, a noite não exibia nenhuma estrela de raro brilho. Sem saber exatamente o que fazer, ele andou em direção à parte da cidade onde poderia encontrar algum sentido para a sua vida, a sua pequena e miserável vida.
Excelente crônica. De maneira perspicaz, o narrador lança flashes do que poderia acontecer no desfecho, instigando o leitor, instaurando o conflito, de forma a criar um suspense que se mantém, sem a suspensão deste no final da narrativa, ou melhor, não há desenlace explícito. Assim, no estilo machadiano, o leitor é levado ao enigma, é convidado a trazer à tona a continuidade do conflito, a resolução ou não da tensão.
Parabéns, Luís.