Quando nasci, a obra completa de Jorge Amado já estava lá. Foram, durante muitos anos, os únicos livros na estante. Eles esperaram que eu pegasse gosto com Meu Pé de Laranja Lima, Os Meninos da Rua Paulo, Éramos Seis; que me formasse leitora com Dom Casmurro, A Metamorfose e Laços de Família. Um dia parei diante daqueles 24 volumes de capa roxa envergonhada debaixo de letras douradas e aceitei o desafio, garrei ler. Menos porque era Jorge Amado, mais porque seria a primeira oportunidade de dizer: li tudo.
Essa experiência de ler tudo de um autor A é singular. Alguma coisa se imprime em você para sempre. E mesmo que você se esqueça dos enredos, das personagens e dos jogos de palavras, de tempos em tempos um jeito específico de ver o mundo se impõe, como óculos que caem do céu sobre seu nariz, um conhecimento vindo das profundezas da imaginação torna-se acontecimento. Foi assim que, neste fim de ano, acompanhando de longe o burburinho sobre a escolha da nova Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá em Salvador, me lembrei de que já tinha vislumbrado o poder e a magia desse universo com as lentes de Jorge Amado.
De tudo que sou capaz de esquecer, a figura mais bem inscrita no reconvexo da minha memória literária foi o Pedro Arcanjo da Tenda dos Milagres. E mais, para aumentar a confusão e reforçar os mitos, sobre sua figura, uma outra se desenhava, a de Macunaíma, as linhas quase coincidentes, apesar de distintas, sobrepondo-se, engrossando-se como tatuagem. Na caverna escura onde guardo minhas lembranças (lá onde elas se escondem de mim), Pedro Arcanjo e Macunaíma ecoam o aprendizado de que não existe tradição sem criação. Nas palavras do narrador do romance: “sem deixar de ser luta, foi balé”.
O herói sem nenhum caráter de Mário de Andrade, destituído de uma essência, um centro identitário estável, age segundo a lógica da apropriação indébita: devora a mãe, as irmãs, oferece-se em banquete ao gigante Piaimã, ao mesmo tempo em que expressa seu desejo de devorá-lo também. Macunaíma poderia ter dito: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”, mas foi Oswald quem o disse no famoso manifesto. Uma tradição molhou-se na boca de Macunaíma, outras começam no mesmo gesto de devoragem.
Sujeitos de imaginação disruptiva, Mário e Jorge inventaram mentiras para forjar novas verdades e nos dar a chance do sonho e da liberdade. O Pedro Arcanjo de Jorge Amado, assim como Macunaíma, parecem pertencer ambos à linhagem do que Lewis Hyde chamou de trickster, um tipo de herói cultural capaz de tudo destruir para tudo refazer. Caos e cosmos em um só ato. O idiota imaginativo, o viajante astuto, o tolo sábio, o herético. O antropófago, eu acrescentaria, por serem todos cruzadores de fronteiras, ambíguos, feitos de duplicidades. Feitos de contradições que abrem caminhos para outras formas de viver, de coexistir, quem sabe “indiferentes à diferença”, como propõe Safatle, sendo capazes de verdadeiro respeito.
Hyde não chega às personagens brasileiras de Mário de Andrade ou de Jorge Amado, mas mapeia os orixás do Candomblé: lá encontra Exu, o senhor das encruzilhadas, de quem Pedro Arcanjo é filho – “filho predileto”, diz o narrador de Jorge Amado. Exu do movimento, da metamorfose, da devoração criadora: um dia Pedro Arcanjo cruzou o caminho de uma finlandesa (apresentada como sueca) e fecundou linhagem no norte europeu. Tinha orgulho de sua prole misturada.
Na manhã de sua morte, subindo uma ladeira, Pedro Arcanjo ia remoendo sua tese da miscigenação, bem como suas práticas a favor da grandeza nacional: “Há de nascer, há de crescer e de se misturar… Quanto mais misturado, melhor…” – o sonho modernista da miscigenação exigindo ser ressignificado bem que podia simplesmente sinalizar que somos capazes de viver juntos e misturados, sem morrer pelas mãos do colonizador, sem nos oprimir uns aos outros em nome de privilégios.
Essa lógica da mistura repercute a filosofia antiessencialista dos heróis sem nenhum caráter. O Pedro Arcanjo de Jorge Amado segue seu destino como um ojuobá da antropofagia: sabedor de si e de seus vizinhos, linha de transmissão fundamental no circuito dos afetos dos moradores da Cidade Baixa e dos trabalhadores do porto, perguntava – “quem mais precisa aprender senão os sabichões de meia-tigela?”. Para discutir com os “sabichões”, que, no contexto do romance eram racistas e eugenistas, leu filosofia, antropologia e etnologia europeia; aprendeu línguas e formas poéticas clássicas; tudo devorou e transformou, inaugurando a universidade popular do Pelourinho. Tradição, luta e criação em uma só trama.
“No amplo território do Pelourinho, homens e mulheres ensinam e estudam. Universidade vasta e vária, se estende e ramifica no Tabuão, nas portas do Carmo e em Santo Antônio Além do Carmo, na Baixa dos sapateiros, nos mercados, no Maciel, na Lapinha, no Largo da Sé, no Tororó, na Barroquinha, nas Sete Portas e no Rio Vermelho, em todas as partes onde homens e mulheres trabalham os metais e as madeiras, utilizam ervas e raízes, misturam ritmos, passos e sangue; na mistura criaram uma cor e um som, imagem nova, original” – assim começa o romance de Jorge Amado.
Acredito mesmo que foi porque li isso um dia que hoje sou capaz de sonhar com essa forma de construir conhecimento – livre, sem hierarquias, criativa, política. Alguém já escreveu que os romances não mostram nem comprovam algo do mundo, mas antes (ou depois) acrescentam algo ao mundo. E eu, que nunca joguei capoeira, mas li Jorge Amado e Mário de Andrade, ouvi Elza Soares e Gal Costa, sou filha da filha da filha, faço a glosa: “sem deixar de ser balé, é luta”.