“Tristeza, por favor vá embora. Minha alma que chora, está vendo o meu fim.” Quando o Carnaval acaba, a gente fica com aquela sensação de que nossa cota de fantasia se esgotou, que gastamos nosso estoque de sorrisos, que agora é a hora de encarar uma realidade sem brilho, cinzenta, melancólica. Mas se tem uma coisa que fica dos dias de folia é o samba e este ritmo – que como já dizia o poetinha Vinicius de Moraes, nasceu lá na Bahia – vai muito além do repique da cuíca. Ele nos faz refletir.
Já dizia Zé Ketti, “eu sou o samba, a voz do morro, sou eu mesmo sim senhor, quero mostrar que tenho valor”. E a cada desfile na Marquês de Sapucaí, em cada fantasia nos blocos de rua, em cada roda de samba feita no improviso, há um discurso político intrínseco, que mistura denúncia e beleza, ironia e crítica ácida, que dá um grito de excluídos em direção aos camarotes, aos espaços reservados aos ricaços, à classe média tantas vezes alienada em suas bolhas, achando que o mundo se resume a isso.
No Carnaval 2020 não foi diferente e não poderia mesmo sê-lo. Em tempos de insultos e retrocessos partindo de quem governa o País, no momento em que a democracia é atacada em diversas frentes, em que o desrespeito torna-se praxe, em que o meio ambiente é ameaçado de maneira sistemática e em que o discurso do ódio ganha mais e mais adeptos, o samba pode nos redimir – se prestarmos um pouco mais de atenção ao que seus versos dizem, às mensagens que passa, à sua história de resistência.
Mais de cem anos atrás, o mestre Donga convidava: “ai, ai, ai, deixa essas mágoas lá pra trás, meu rapaz”. No Carnaval daquele tempo, os negros traziam seus cantos para dias de folia sabendo que não poderiam fazer o mesmo no restante do ano. O samba era visto como um ritmo próprio de marginais, era discriminado, visto como se fosse algo criminoso, símbolo da vagabundagem. Nessa avaliação havia muito preconceito racial em um País que acabara de abolir o regime de escravidão.
O imaginário da malandragem acompanhou o samba, mas ele o sublimou e o fez se transformar em algo que supera esses rótulos bizarros. Foi ganhando espaços, foi conquistando corações, foi se desenvolvendo, mas sem jamais esquecer de suas origens, que remetem àquele tempo em que enfrentava a polícia, a opressão, a ignorância de quem não o compreendia. Seu gene nunca mudou e é por isso que a cada Carnaval o samba grita contra injustiças, perseguições, desafia e enfrenta.
Neste ano foi a Mangueira, com seus tantos Cristos – o Jesus favelado, o Jesus negro, o Jesus mulher, o Jesus gay, o Jesus com cabelo platinado, cravado de balas, visto sempre como bandido. Neste ano foi a São Clemente, que trouxe a caricatura do presidente da República e seus gestos histriônicos que alimentam sentimentos tóxicos, que ofendem e incentivam a violência. A campeã do Carnaval paulistano foi a escola Águia de Ouro, que fez uma homenagem ao educador Paulo Freire, tão vilipendiado pelo atual governo. E na folia foi feita a catarse quanto a ministros alucinados, policiais amotinados, gente desempregada ou “uberizada”.
Claro que o samba não traz todas as respostas, não vai nos recolocar nos trilhos, não vai resolver nossos graves problemas. Mas ele é uma manifestação artística poderosa, é a voz que soa e se faz ouvir, é a cultura popular em seu estado mais genuíno. É por isso que no samba sempre haverá espaço para todos, do morro e do asfalto. Sei como é: “Madame não gosta que ninguém sambe, vive dizendo que samba e vexame”. Que se dane a madame. No Brasil de hoje, cantamos a tristeza assim: “Fez do meu coração a sua moradia, já é demais o meu penar”. Mas como diz um outro samba famoso, usado para denunciar as agruras da ditadura: “Vai passar”.