Imagino que já tenham interpretado, dito, pensado e escrito quase tudo sobre o filme Parasita. As comparações com Coringa são inevitáveis. Confesso, mesmo vestido de uma camiseta estampando a imagem do predileto anti-herói, que não cedi, nas primeiras cenas, ao impulso comparativo. Recordei, de pronto, do artista Gustave Doré (1882-1883), que percorreu a Dudley Street, em Londres, no ano de 1872. Crianças brotando dos porões, um amontoado de pobres e gente sem esperança, como fantasmas, deram forma aos seus quadros.
Em seguida, observando a simbiose entre a moradia precária e o trabalho precário, não contive o impulso comparativo com um conhecido escritor inglês. Lembrei de Dickens e seu maravilhoso Tempos Difíceis. Charles Dickens (1812-1870), com palavras, antecipou o que Gustave Doré faria com as ilustrações. Os dois artistas ofereceram uma imagem urbana que contrapôs, de forma indigesta, o otimismo da Era Vitoriana. O historiador Lewis Mumford, lembrando a cidade ficcional de Dickens, explica que “Coketown especializou-se na produção de maus rapazes” (1998, p.483) – maus rapazes nas fábricas, nas minas, nos cortiços, nas tabernas, nas ruas. Era preciso administrar, punir, castigar, na cidade vitoriana, os maus rapazes, afinal todos tiveram sua chance no laissez-faire.
Mas o impulso comparativo, como de costume, foi mais forte. Percebo, como um curioso do desenvolvimento urbano, que a morfologia da habitação e a morfologia do trabalho dominam a narrativa dos filmes Coringa e Parasita. Há uma simbiose entre o enredo e a paisagem urbana. O espaço urbano não é apenas palco. É, para lembrar Milton Santos, rugosidade. Furúnculo que, mesmo provocando náuseas, insiste em se mostrar. Ratos, em Coringa, excrementos, em Parasita, só provocam asco, mesmo que momentâneo, nos telespectadores. A cidade vitoriana, em constante processo de higienização, aparece como eufemismo diante da cidade decrépita de Coringa e Parasita, só comparáveis à Nova Crobuzon, do genial escritor China Miéville. A tensão do encontro de classes parece, momentaneamente, naturalizada – todos, aparentemente, aceitam seus lugares e seus papéis.
Mas as escadas atrapalham a harmonia. Muitas escadas. Sempre as escadas. Arthur Fleck tenta, mas não consegue, atender nenhuma expectativa profissional ou pessoal. É mais um dos milhões de derrotados anônimos que povoam as cidades. As horas do seu dia parecem se confundir com os infinitos e monótonos degraus da escadaria. Sobe as escadas, vagarosamente, como o derrotado Arthur Fleck e desce, aparentemente alegre, como Coringa. Em Parasita, as escadarias também estão presentes. Escoam água, suor e excremento. O contraste urbanístico, no entanto, é mais didático, revelando, sem pudor, como a separação entre o espaço público e o espaço privado é, apenas, artificial. A cidade partida, nessa perspectiva, não passa de uma infeliz metáfora.
A cidade de Ki-taek e de Arthur Fleck celebra, em cada cena, o espetáculo da separação – separação de renda, separação de consumo, separação de esperança. A separação é redundante. O encontro é elemento necessário para reprodução e explosão das vidas. Guy Debord sempre esteve certo: “O espetáculo reúne o separado, mas o reúne como separado” (A Sociedade do Espetáculo, 1997, p.23).
Essa é a era da cidade neovitoriana. Não é mais o agora ingênuo liberalismo do século XIX, pautado no predomínio da dimensão econômica, tão bem representado por Coketow. Sua morfologia não esconde parte do operariado, como no século XIX, em minas insalubres e fábricas imundas. O caráter de classe do trabalho, para lembrar a fértil analogia de Richard Sennet, em A Corrosão do Caráter, foi extinto e, com ele, sua cidade. O cinismo da frase “Com o suor do teu rosto comerás o teu pão” não encontra ressonância nas ruas repletas de desempregados e pedintes. A glorificação do trabalho não sobreviverá, nem mesmo, nos templos religiosos. A política neovitoriana não guarda mais vínculo com qualquer sopro da social-democracia que, aliada aos compromissos fordistas, destinou algum excedente às políticas distributivas em diferentes áreas – previdência, assistência social, habitação, saúde, educação etc. Isso tudo transformou a cidade em um imenso celeiro de violência.
Acredito que Ki-taek seja tão parecido com Arthur Fleck quanto o Senhor Park o é com Murray Franklin. Os dois últimos, no entanto, sempre souberam o lugar social e espacial reservado aos dois primeiros. Os dois primeiros, ao contrário, mesmo que por um momento, acreditaram ser possível romper a barreira da indiferença do lugar social e do lugar espacial. No fim, Coringa e Parasita demonstram, pelo ângulo da ficção, que os encontros na cidade neovitoriana são mediados, cada vez mais, pela intolerância, pela violência e pela imprevisibilidade – qualquer semelhança com a cidade contemporânea é mera coincidência. Só que não…
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
DICKENS, Charles. Tempos difíceis. São Paulo: Edições Paulinas, 1968.
MIEVILLE, China. Estação perdido. São Paulo: Boitempo, 2016.
MUMFORD, Lewis. A cidade na história. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1997.
SENNET, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 2012.
Tadeu mais que relevante, necessário. Sou seu fã, mestre. A análise de Slavoj Zizek sobre The Joker é muito válida também.