“A formiga quando quer se perder cria asas.”
Foi este provérbio que a mãe pensou quando a filha mais nova apareceu na sala arrastando a maleta.
Ela estava vestida com a roupa que usara no Natal, entre o displicente e o casual: uma saia curta sobre a qual uma blusa floral marcava o seu tórax, expondo uma pessoa saudável e atraente. Calçava tênis de cor amarela. Uma mochila estofada pendia de seu ombro direito. Um pacote pequeno jazia ao seu lado. Estava tão incomodada quanto atenta.
“Já vou indo, mãe!” – anunciou.
Era um fim de manhã, o intervalo que antecedia o almoço. Não fazia frio nem calor, mas soprava uma brisa agradável que mal perturbava as folhas da avenca debruçadas sobre o vaso colocado próximo à janela. A casa estaria silenciosa se não fosse a panela de pressão resfolegando na cozinha.
“Você devia despedir-se ao menos de seu pai e de seus irmãos” – tornou a falar a mãe.
“A senhora conhece o pai. Ele jamais aceitaria. Dentro de alguns dias, mando alguém buscar o resto das minhas coisas.”
A mãe estava usando o avental surrado com desenhos de pimentões, no qual tinha o hábito de esfregar as mãos toda vez que estava diante da pia.
“Minha filha, espere o seu pai… Ele não deve demorar.”
A garota ignorou o pedido. Em seguida, endireitou a mochila no ombro e respondeu, como se dissesse um adeus definitivo:
“Mãe, você sabe, o pai é um grande filho da puta!”
Ela ouviu – e entendeu, pois era a mais crua verdade.
Naquela família, havia uma brutalidade que a filha mais nova não suportava mais. Por isso, decidiu cortar os laços e redirecionar a sua vida, indo para um lugar no qual jamais seria alcançada.
O amor, a delicadeza, a amizade eram bichos que roíam a aba dos conceitos. Já a liberdade era um inseto que queria voar.
As mulheres se encaravam, sem chance de acordo. Mãe e filha, como fêmeas que não se perdoam: uma que se conforma; outra que remói a alma.
“Minha filha, parece que você não entende o seu pai. Ele só quer o seu bem. Antes de cometer uma doidice, converse com o pastor. Ele vai te dar bons conselhos.”
A filha, porém, não cedeu. E sentenciou:
“Nesta casa não fico mais!”
Quando estavam nessa arenga, a porta da sala de repente abriu-se com estrondo e o pai entrou meio inclinado, o andar desconexo, apoiando-se escorregadio nas paredes.
Ao ver a cena – a mulher aflita, esfregando as mãos no avental, e a filha pronta para sair de casa –, ele sacou o lance.
Antes que esbravejasse, fizesse um escarcéu e amaldiçoasse a sua sina, a mulher deu dois passos à frente do marido e suplicou:
“André, em nome de Deus, não faça mal à menina. Estamos só conversando. Basta de abuso e vergonha. Eu já não aguento mais!”
Algumas horas antes desse confronto, o pai ficou longo tempo no bar degustando doses que desciam sedosas. Os gorós que afinal entornou provocavam nele, cada vez mais, uma vontade estranha, que não sabia de onde vinha.
Foi por isso então que disse de forma idiota, quando escorou o olhar na sua linda filha, as palavras babando de injúria, a revolta desnorteando-o.
“Ora, ora, o que temos aqui? A nossa mocinha pronta para bater as asas? Que porra é essa?”
A linda filhinha, que se cansara dos abusos, já antecipara um provável embate. Por ter se precavido, borrifou o spray, que o cegou. Ele ainda gritou algumas vezes antes de receber a estocada, que afinal o derrubou.
A mãe a tudo assistiu esfregando a sua histeria no avental.
Após essa sequência de eventos, um dos quais manchava o piso de sangue, a filha pegou os seus pertences, ajeitou a mochila no ombro, passou pela porta aberta e ganhou a gentileza do Sol que, naquele resto de manhã, mandava os seus raios para todos os viventes, os bons e os maus, os vivos e os mortos.