[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Lição de Kant
Poeira de estrela
aqui estou exilada
e não sou nada.
Vejo o céu estrelado
– anos luz-pirilampos –
a cifrar a mensagem
que nos veio de Kant.
Recebo o mesmo impacto:
o espetáculo dessa noite
um céu repleto de estrelas
desaba sobre a humana vaidade.
Contemplo nos olhos do filósofo
essas mestras da humildade.
E também piso e esmago
o orgulho de criatura insignificante:
̶ não sou nada.
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[2]
O outro
Caminhamos anos após anos
e ao meu lado e sempre
a mesma face impenetrável.
Esfinge que sorri
um sorriso estranho
que só vem dos lábios.
De braços dados pela vida
debruço sobre o seu arcano
e não passo do gelo do espelho.
Sondo o seu mundo pro-fundo
e me perco no desvio
do primeiro labirinto.
E olho, e sondo, e procuro,
e desisto diante da resposta
desse espelho tão frio e mudo.
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[3]
Evidência
Com a paciência
de quem vai tirando
a forma do barro,
nós vamos compondo
a nossa precária
e vasta eternidade.
Não tenhamos pressa:
a escritura se encarrega
de tirar as pedras do caminho
para ocupar a gleba
que já registramos.
(Donos de direito e de fato,
não haverá demanda,
nenhum litígio no azul
que inventamos).
E no puro silêncio
de quem não precisa
pedir a palavra,
fale a muda eloquência
de quem para sempre
encontrou sua mina
e impôs sua lavra.
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[4]
Dureza gípsea
Por que eu tenho de ser
essa pedra dureza zero
que se fere e se marca
à menor pressão digital?
Por que essa dureza gípsea
se as pedras do caminho
são sempre facas de aço
a reclamar sua fatia?
Nesse mundo de aroeira e ferro
tive de ser essa tenra paineira
cheia de marcas a faca
que cicatrizam por fora
e guardam (por dentro) a ferida.
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[5]
Rota
Vejo uma estrela solitária
ponto dourado, perdido em lindo azul.
Vejo um enigma, talvez mensagem
luzindo tranquila ao fim da tarde.
No céu que se enegrece
uma estrela ou cifrada mensagem
que apenas brilha e não cintila;
chama e não insiste.
Por que só uma estrela no céu?
Por que esse brilho tão estranho
na luz azulada dessa esteira
que ruma certa para o infinito?
No céu, apenas uma estrela:
suave, tranquila, certa de sua rota
perseguindo um ponto em seu destino.
Navega rumo a Vega ou Órion?
Quero ir nesse rastro dourado
de estrela viageira, bem segura
que nunca se perde
em sua eterna caminhada
buscando um porto no infinito.
Perfil
Darcy França Denófrio nasceu em 21 de julho de 1936 na fazenda Nova Aurora, no hoje município de Itarumã-GO. É bacharel e licenciada em Letras Modernas Inglês-Português pela Faculdade de Letras da UFG, onde realizou também estudos de pós-graduação e obteve título de mestre em Teoria Literária. De 1961 a 1976, dedicou-se ao magistério em colégios goianos. Destacou-se como professora de Teoria Literária nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Letras da UFG. É crítica literária, poeta, pesquisadora e ensaísta. Em conferências e estudos publicados, deu especial preferência à literatura produzida no estado de Goiás, objetivando valorizá-la e enfatizando autores de reconhecido talento. No gênero poesia, publicou os seguintes livros: Voo cego (1981, Prêmio Estadual Cora Coralina), Amaro mar (1988, Prêmio do Instituto Nacional do Livro), Ínvio lado (2000, Prêmio Jorge de Lima), Poemas de dor e ternura (2008) e 50 poemas escolhidos pelo autor (2011). Escreveu ainda Composição programada (1970, 3v.), obra de cunho didático. Na área da crítica literária, publicou os seguintes títulos: O poema do poema em Gilberto Mendonça Teles (1984), Literatura contemporânea: o regresso às origens (1987), A obra poética de Afonso Félix de Sousa: dois estudos (1991), Antologia do conto goiano I – Dos anos dez aos sessenta (1992, em coautoria com Vera M. Tietzmann Silva), Hidrografia lírica de Goiás I (1996), Lavra dos Goiases: Gilberto e Miguel (1997), Léo Lynce: poesia quase completa (1997), Lavra dos Goiases II: Afonso Félix de Sousa (2000), Lavra dos Goiases III: Leodegária de Jesus (2001), Cora Coralina (2004), O redemoinho do lírico: estudos sobre a poesia de Gilberto Mendonça Teles (2005), Da aurora de vidro ao sol noturno: estudo sobre a poesia de Fernando Py (2005) e Cora Coralina: celebração da volta (2006, em coautoria com Goiandira O. de Camargo). Tem poemas traduzidos para o inglês e o espanhol. A lírica da autora despertou interesse de vários estudiosos. Moema de Castro e Silva Olival, crítica literária goiana, assim se expressa sobre a sua poética: “[ ]é a voz mítica da mulher, na trajetória milenar de sua condição-objeto para a condição-sujeito, no processo de percepção e conscientização de suas forças e de seu próprio destino. Na verdade, em sentido lato, sua poesia busca expressar as diversas etapas do processo existencial do ser humano, tentando abarcar as situações conflituosas deste ser em busca da sua realização. Consegue flagrá-lo, ora no desânimo provocado pela constatação da implacável mão do destino, do inarredável do seu traçado, percebido através da fatalidade; ora sugerindo, por interrogações, negações, oposições, o início da descoberta da reviravolta, da possibilidade da reação e, finalmente, apontando esta reação” (Darcy França Denófrio: potência e magia na voz poética. In: O espaço da crítica: panorama atual. Goiânia: Editora da UFG, 1998. p. 316. [Coleção Hórus, v. 4]).
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