Repetida à exaustão, a expressão “isolamento social” se tornou uma espécie de mantra que nos manterá a salvo do mal apocalíptico que se alastra pelo mundo. Isolamento de corpos, na verdade, se nos contentarmos com o arremedo de sociabilidade que as redes digitais oferecem, uma sociabilidade asséptica, sem contato, saliva, suores e demais secreções alheias que coloquem nossa saúde, senão mental, pelo menos física, em risco neste momento. Mas, pensando por outro caminho, será que essa experiência de confinamento não passaria apenas de uma hipérbole, a radicalização de uma situação já há muito materializada, isolando indivíduos que, no fim das contas, apesar de juntos no cotidiano, já viviam de alguma forma isolados? E, o que é pior, imersos na mais profunda solidão?
Para refletir um pouco a partir dessas indagações, a obra da filósofa Hannah Arendt, em particular as distinções que ela propõe, no livro Origens do Totalitarismo e em outros ensaios políticos, entre as experiências do isolamento, da solidão e do “estar-só” (“solitude”), pode nos ajudar na tentativa de compreender essa condição paradoxal das massas na sociedade contemporânea.
Nas páginas finais de Origens…, Arendt escreve que o isolamento, na esfera da política, é sinônimo da incapacidade de agir – lembrando que a “ação”, na sua dimensão política, como a pensadora define no livro A Condição Humana, é sempre uma realização coletiva. Quando agem politicamente, os seres humanos o fazem em conjunto, “em concerto”. O isolamento ocorre quando essa possibilidade de ação coletiva é suprimida. “O isolamento é aquele impasse no qual os homens se veem quando a esfera política de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse comum, é destruída”, sintetiza.
Por definição, o isolamento é a condição de todos nos regimes tirânicos, nos quais a liberdade de ação política é completamente cerceada. No entanto – e Tocqueville já chamava atenção para esse fenômeno na primeira metade do século XIX, em seu clássico A Democracia na América –, os indivíduos das modernas sociedades democráticas de massa, voltados exclusivamente para as suas vidas privadas, também se veem reduzidos a esse estado, cada vez mais alijados da sua capacidade de ação política para a realização de projetos em comum.
Mas se o isolamento representa a impossibilidade de exercer a capacidade humana da ação em concerto, ele não significa, por outro lado, a supressão de todos os contatos entre os seres humanos nem tampouco a eliminação das outras capacidades humanas. No isolamento, “toda a esfera da vida privada, juntamente com a capacidade de sentir, de inventar e de pensar, permanece intacta”, afirma Arendt. Aliás, em algumas situações da vida, o isolamento é mesmo necessário. O ser humano na sua condição de homo faber, o qual fabrica coisas que tornam o mundo uma obra humana, tende a se isolar, a se retirar do terreno da política, para exercer seu ofício, conforme Arendt escreve na Condição Humana. Assim ocorre com o artista e o escritor, e também com o artesão e com o arquiteto, para ficar em alguns exemplos. O fruto da atividade de cada um deles (um quadro, um livro, um móvel ou o projeto de uma edificação) acrescenta algo de si mesmos ao mundo. “No isolamento, o homem permanece em contato com o mundo como obra humana”, salienta Arendt.
Somente quando é destruída essa forma mais elementar da criatividade humana – a possibilidade de acrescentar algo de si próprio ao mundo, humanizando-o – é que o isolamento torna-se insuportável e transforma-se em solidão. Isso ocorre quando todas as atividades humanas se resumem ao esforço do trabalho visando assegurar a própria subsistência, quando os trabalhadores se sentem alienados do produto do seu trabalho. A relação com o mundo como criação humana, nesse caso, também se esvai. O indivíduo isolado perde seu lugar no terreno político da ação; o indivíduo solitário, além desse vínculo político, perde também a sua relação com o mundo como produto da criatividade humana. É um ser desenraizado que, no limite, se vê destituído até da sensação de pertencimento ao mundo. Para ele, o mundo se torna um lugar hostil, desumanizado.
Quando escreveu sobre o isolamento e a solidão nas páginas finais de Origens…, Hannah Arendt tinha em mente os governos totalitários da primeira metade do século XX, que não só destruíram a esfera da vida pública, reduzindo os indivíduos ao isolamento, como também invadiram a vida privada, o refúgio da criatividade e da invenção onde era possível estabelecer alguma conexão com o mundo como criação humana, levando as pessoas a experimentarem a mais radical e desesperadora experiência que se pode ter – a experiência da solidão, de não pertencimento ao mundo. Mas essa experiência da solidão acabou se transformando na condição das massas no mundo contemporâneo. Confinados ao status de animal laborans, cujo única razão para viver é laborar pela própria subsistência, como se a vida se resumisse ao metabolismo biológico, os indivíduos modernos sobrevivem alheios aos outros e ao mundo que o cercam. E abandonados até por si mesmos.
Porque a solidão também é o abandono de si próprio, quando eu não disponho sequer da minha própria companhia, quando “falto a mim mesmo”, para usar a expressão de Jaspers.
Nesse ponto, é importante introduzir outra distinção feita por Arendt, entre a solidão e o “estar só” (solitude).
“Nunca um homem está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só do que quando a sós consigo mesmo.” Em suas reflexões sobre o pensamento, Arendt sempre costuma evocar essa dito atribuído a Catão, escritor e político célebre de Roma. Contrapondo-se à tradição da filosofia, Arendt não situa o pensar como parte da vita contemplativa em oposição à vita activa. A contemplação requer um estado de passividade, em que o espírito entra “em repouso” para contemplar a verdade. Já o pensamento, embora exija que se abra mão de outras atividades (daí a expressão “parar para pensar” ), é concebido por ela como uma atividade, talvez a mais ativa entre todas as atividades humanas, entre elas a ação, o trabalho e a fabricação.
“Pois se as várias atividades no interior da vita activa não podem ser submetidas a nenhum outro teste senão a experiência de se estar ativo, a atividade de pensar como tal bem que poderia superar a todas elas”, afirma Arendt ao final da Condição Humana. Essa “pura atividade” do pensar está bem expressa na primeira parte da frase de Catão: nunca estamos mais ativos do que quando nada fazemos, ou seja, quando “paramos para pensar”.
A segunda parte da frase – “nunca está menos só do que quando a sós consigo mesmo” – é reveladora, segundo Arendt, daquilo que já estava expresso na filosofia socrática, conforme se lê em alguns diálogos platônicos. Quando penso, não sou apenas um, mas dois-em-um, porque o pensamento é um diálogo interior e silencioso, em que o eu se desdobra e conversa consigo mesmo. Mas para que esse diálogo ocorra é preciso que esses dois parceiros nos quais o eu se divide estejam em harmonia, que sejam amigos. Daí que, se estou privado da companhia de outras pessoas, mas conservo esse hábito de dialogar comigo mesmo, nunca estou realmente sozinho, porque eu não falto a mim mesmo. É esta a condição do estar-só (“solitude”), mas não da solidão.
O mais importante é que, nesse diálogo do dois-em-um que travamos conosco quando começamos a pensar, não perdemos o contato com o mundo dos nossos semelhantes, que estão de alguma forma representados nesse meu eu que se desdobra, porque, quando penso, também penso do ponto de vista dos outros. Pela imaginação, meu pensamento “sai em visita”, percorrendo perspectivas alheias, levando-as em consideração, sem ter necessariamente de concordar com elas – num exercício de pensamento alargado, como diria Kant. Aquele que se fecha em si mesmo, que não dialoga nem consigo mesmo nem com os outros pela imaginação, é realmente uno e solitário.
E solitário permanece mesmo em meio à multidão.
Esta explicação de isolamento social abordado pela autora segundo a filosofia , está na verdade entranhado em nós quando refletimos sobre nosso interior, no âmago do nosso ser.
Realmente não estamos solitários se nos posicionamos, opinamos e participamos na nossa esfera de convivência.
Parabéns Rosângela por este excelente texto, que nos leva a reflexão .
Muito bom e oportuno esse artigo! Um significativo cotejo entre Sócrates e Catão, pelo viés de Hannah Arendt. Bravo, bravíssimo!!
olá, muito bom o seu comentário, parabéns; procurei o significado da palavra isolamento em um dicionário filosófico más não tinha, até que fui lapidando e achei essa sua pérola, pois me levou a pensar no isolamento do Profeta Elias quando entrou em uma caverna e tantos outros homens de DEUS e até mesmo o Pròprio SENHOR JESUS em agonia no Getsemani, então fiquei a me perguntar : __ que tipo de isolamento eles enfrentaram, o externo ou o interno ?