Dia após dia, acompanho recluso do meu apartamento a renovação de decretos aumentando cada vez mais o rigor do nosso isolamento social. Sem o bar da esquina, a agitada avenida comercial, e tampouco a pracinha, já começo a sentir também a falta daquela vida dos happy hours das sextas-feiras quando cumprimentava o carismático garçom, apelidado de “Baixinho”, ou de avistar nas manhãs durante a ida ao trabalho o esforçado flanelinha, pai de duas filhas, incluindo neste saudosismo o malabarista peruano e suas peripécias no semáforo, ao qual sempre recusava gorjeta.
O mundo realmente está fora dos eixos, mas, diferente de Hamlet, pareço não ter nascido com a tal sina de consertá-lo. Quem sabe por motivo de azar, a vida pode ter me tornado egoísta demais, pusilânime demais a ponto de impedir tão belo gesto de rebeldia e amor. E por falar em amor, passa agora na minha cabeça a fábula de Arthur Schopenhauer, de certo modo apropriada num tempo de suspeitas e do crescente distanciamento social – refiro-me à fábula do porco-espinho.
O filósofo alemão conta a história de dois porcos-espinhos vivendo sob o rigoroso inverno numa floresta. A fim de espantarem o terrível frio, buscavam um ao outro, ansiosos pela expectativa do abraço caloroso. Contudo, para a infelicidade de ambos, o esperado gesto de afeto era gravemente interrompido pela imensa dor provocada pelos espinhos de seus corpos, forçando-os a se separarem e retornarem à gélida solidão. Não convencidos do motivo dessa desunião, e teimosos, insistiam noutra aproximação, mas os mesmos espinhos voltavam a feri-los, condenando-os novamente ao irremediável fracasso.
Afinal, a indefinição afetiva simbolizada pelo vaivém da relação entre os dois porcos-espinhos pode nos dissuadir das esperanças no amor? A contragosto, lamento dizer sim, mas não respaldado pela história de Schopenhauer, e sim porque hoje a ciência anuncia o risco de haver no meu corpo coisa mais repelente e letal do que simples espinhos. Algo agressivamente absurdo e repulsivo, proibindo-me o beijo e o abraço, retirando-me até mesmo o direito de suspeitar do aperto no peito, típico daquelas pessoas apaixonadas. Os cientistas chamam esse risco de “coronavírus”. Se, de acordo com Gilles Deleuze, “filosofar” consiste em criar novos conceitos, então é este conceito de coronavírus que eu escolho como epígrafe. Atualmente, nesse mundo globalizado, esta palavra tem pressuposto várias ações do dia a dia. Em nome dela, justificamos a fria distância entre nós. Em nome dela sou obrigado à censura do toque, considerando a injusta acusação da falta de higiene, somada à suspeita de estar infectado sem o saber.
Outrora cheguei a sonhar com um mundo deontologicamente regido pelo mais puro imperativo categórico kantiano, permitindo a homens e mulheres alcançarem o perfeito convívio graças ao implemento de irrepreensíveis formas de conduta. No entanto, rapidamente lembrei das consequências anunciadas nos livros de Orwell e de Huxley – ora, ora, nessas horas é quase impossível esquecer de 1984 ou de Admirável Mundo Novo.
Como distinguir pesadelo da realidade? Atento a este ângulo do problema, percebi o erro de ter algum dia acreditado saber o suficiente para discernir acerca do belo e do feio, do certo e do errado. Porém, a palavra “coronavírus” obriga-nos não somente à interdição do vaivém dos corpos mediante as regras de isolamento, pois o poder devastador desta palavra tem afetado duramente nosso espírito. De “espírito” advém o termo “espiritualidade”, ou seja, tudo o que compõem sentimentos complexos e arrebatadores, inalcançáveis pela moral, mas indiscutivelmente essenciais a fim de nos garantir o pertencimento na ordem do humano.
A política desenvolve planos de contingenciamento, a ciência produz meios preventivos, medicamentosos e vacinas enquanto a moral convoca à obediência do senso coletivo. A princípio, tratar-se-ia de uma tríade incontestável caso não faltasse o componente importantíssimo dentro deste planejamento: a espiritualidade. Essa espiritualidade leva à pergunta de como viver bem. Não faço menção a nenhuma espiritualidade religiosa, apenas pretendo aqui defini-la no sentido laico, isto é, desapegada de crenças, deuses ou religiões. Parece estranho conceber isso, mas a laicização da vida espiritual já é tema antigo, perpassando a antiguidade desde o epicurismo até o século atual, representada nas reflexões dos pensadores franceses André Comte-Sponville e Luc Ferry. Logo, defender uma sabedoria depois da religião e aquém da moralidade é a tônica defendida, haja vista que se, por um lado, “religiosidade” e “moral” podem definir as condições da vida em coletividade, por outro lado, são conclusivamente incapazes de dar sentido à existência ou mesmo darem preço às nossas escolhas.
Diante da crise provocada pela pandemia do covid-19, ciência e moral jamais me ofereceriam respostas satisfatórias. Posso atender com rigor às exigências da Organização Mundial da Saúde ou da moralidade dos costumes, embora estas nem de perto sejam capazes de resolver minhas angústias, paixões, ansiedades e tédio. Não fui devidamente formado para lidar com tamanhas vicissitudes e atribuo grande culpa disso à falta intelectual da pós-modernidade ao favorecer apenas métodos científicos ao passo de uma filosofia restrita aos temas da moral, da lógica e da política. Assim, tão diferente dos antigos gregos, parecemos ter abandonado o estudo da sabedoria e da vida boa, deixando seu tratamento à mercê do campo das religiões. Logo, sinto uma mensagem de interesse espiritual e não propriamente religiosa.
Em síntese, pensar na morte, quer seja por contrair um vírus ameaçador ou causada em razão de algum outro motivo, não precisa necessariamente passar pelo crivo das religiões tradicionais, pregadoras da salvação eterna. O meio espiritualmente leigo de vencer a morte consistirá, portanto, em acolhê-la, reconhecendo unicamente a nossa finitude.