Dia desses, levava Tetê para dar uma volta na Praça Cívica, mas de carro e com vidros fechados. O sol estava acabando, assim como o mundo que conhecemos. Rodando lentamente pelo anel externo da praça, fiz questão de olhar para a casa de Bariani Ortencio. Isso ainda continua igual: a mesma horizontalidade de uma caixa que guarda as memórias oficiais de Goiânia, a mesma escada mágica que te promete levar para algum lugar além do primeiro piso. E para completar o quadro, um dos janelões estava aberto, emoldurando o escritor, sentado, com o olhar perdido sobre a praça. Parecia que estava ali há 96 anos.
Minha impressão de eternidade não vem apenas com a idade avançada de nosso “guardião”. Eu mesma me sinto velha para o futuro que cai como a tarde sobre nossas cabeças – essa tarde com peso de viaduto (salve Aldir Blanc!). E no tempo em que sonhava em ser arquiteta, e nossa democracia era uma promessa luminosa, subi aquela escada. Foi quando ganhei meu primeiro livro de poesia de uma mulher goiana que não se chamava Cora, era Darcy França Denófrio. Quantos jovens estudantes – de arquitetura, mas também de história, de literatura, de cultura popular não subiram? Bariani recebe bem os curiosos, os iniciantes, os sonhadores.
Muito generoso na disposição do conhecimento acumulado, Bariani, contudo, não esteve sempre ali. Mudou-se para a casa projetada por Eurico Godói em 1969. É bastante tempo, mas não é desde sempre. Antes dele, a casa foi de Eurípedes Ferreira (deve ser alguém importante). E antes de Eurípedes Ferreira… nosso costume seria dizer: “aqui, antes, era tudo mato”. E mato o que é? É nada? Quantas histórias cabem num “aqui”? O tempo presente parece fixar uma imagem definitiva de si mesmo, de nós mesmos. A leitura ajuda a imaginar o passado e o futuro.
O problema é que nossa imaginação tem um limite: os museus, as grandes narrativas, a história oficial, o cânone, os livros didáticos com hino nacional, o evangelho do que deve ser lembrado e do que merece ser imaginado. O “aqui” é uma arena de conflitos, os historiadores sabem disso. Num esforço de imaginação, diante da casa de Bariani Ortencio, eu consigo ver em sépia o trabalhador preparando o cimento para lançar os primeiros fundamentos da casa. E antes dele, talvez 50 anos antes, uma fogueira para aquecer o feijão do tropeiro que acreditava fazer a trilha “cultura>natureza”. Foi assim que me ensinaram a ver o passado de Goiânia (mas não só de Goiânia).
Suspeito que haja muitas outras histórias neste “aqui” do dia 2 de maio de 2020 na rua 82 entre a av. 85 e a rua D. Gercina. O romance gráfico de Richard Mcguire me garante que há. O livro de Mcguire foi concebido em 1989 sob orientação de Art Spiegelman, autor do Maus, e conta a história do mundo a partir da observação de um só lugar. E esse contar não se dá por sintaxe, colocando uma palavra atrás da outra, não cria relações de causa e consequência; nem acontece por justaposição, não formaria um mosaico; sua constituição gráfica sobrepõe imagens umas sobre as outras. Um tipo especial de palimpsesto no qual não é preciso escavar porque a parede solta finas camadas, em manchas aqui e ali, indo mais fundo em alguns lugares, apenas rasurando outros, criando bolhas alhures, entrelaçando silenciosamente as histórias num dêitico.
As páginas não são numeradas, mas datadas. Na página/ano de 1957, vemos uma mulher de vestido de corpo acinturado e saia rodada, em uma sala com lareira e mesa de centro de pés palito, perguntando-se o que tinha ido fazer ali. No rodapé desta página, um quadrinho abre-se como em pop-up para um gato passear na mesma sala em 1999. Avançando para a página seguinte, retrocedemos no tempo. O ano é 1623, a paisagem aquarelada sugere floresta, pântano, neblina e, restrita a um “quadro”, na mesma posição da página anterior, a mulher de 1957 permanece em seu gesto interrogativo. O gato de 1999 também está lá, num frame menor, mas parou por um segundo para lamber a pata. Em 2213, as águas tomaram o espaço da casa. Em um píer, um grupo de pessoas utiliza um programa de visualização que permite ver, por meio de hologramas simultâneos, as imagens da casa do século XX.
As páginas de que mais gosto são aquelas paisagens de solidão espacial: em 2014, a casa está vazia, uma mulher olha pela janela e, atrás dela, o vazio significa alguma coisa que deixou de existir; desacontecendo, o vazio grita suas histórias. Na mesma página, um quadro abre para 1503, um pequeno recorte de floresta. “Só mato” – alguém diria, “vazio”, “desabitado”. Este é o lado mais escuro da modernidade, já disse Walter Mignolo, sua feição mais perversa: ensinar a não ver, marcar como visível apenas os sinais da construção, da ocupação, da exploração. A solidão espacial está sempre grávida de sentidos. Aqui, um romance feito de imagens, pouquíssimas palavras, exige do corpo (porque é com o corpo que se imagina) o fôlego de uma maratonista que a cada passada expande sua musculatura para respirar mais, para ver mais.
Como hoje o futuro promete engolir o passado, e até mesmo o presente em que deixo de escrever, tenho procurado as imagens invisíveis que me circundam. Diante da casa modernista da 82, quase posso ouvir o urro da mulher avá-canoeira quando caiu sob o corpo fedorento de um “bandeirante” naquele fim de tarde avermelhado e frio de maio de 1820. Aqui, no 6º andar da esquina da rua 21 com a rua 24 do Centro de Goiânia, procuro, nas paredes do apartamento, saber de dona Helena, minha senhoria, dos anos vividos apenas com o filho mais novo, das visitas quentes dos netos, da alegria ou da tristeza de ter o marido morando distante em uma chácara. Desejaria ao menos uma foto da casa que ocupava esta esquina antes de o edifício Dona Nilda se erguer. Será que tinha alpendre? – essa efêmera ideia arquitetônica feita para atender à necessidade categórica da contemplação?
Me pergunto por onde andará Gilka Bessa, que junto a sua irmã Zulma, e à amiga Getulina Pimentel, escreveram Feminino Plural, livro de poemas ganhador da bolsa Hugo de Carvalho Ramos em 1978. (Depois, Gilka escreveu mais um livro em parceria com a fotógrafa Rosary Esteves, na década de 80.) Por que nunca mais seus versos ganharam força para arrancá-la da periferia da raiva onde se move a consciência de que o destino de uma mulher não pode ser só isso? – escrever um tanto de poemas e calar-se. Quando verei os textos de Eunice Tapuia publicados, contando outras histórias daqui para a gente? Queria saber se em 2213 as águas do rio Botafogo terão tomado os prédios que o sufocam em canal, como sonhou um amigo meu em crônica. E se 150 anos depois disso, poderei avistar a “Mulher anjo” (fotografia, 1981) de Graciela Iturbide atravessar com segurança o deserto de crueldades que criou a distância entre a tradição e a modernidade.
maravilhosa!
Tars, o texto começa como aqueles que prometem criar saudosismo sem culpa. Não é que depois passemos a senti-la, mas de algum modo o saudosismo dá lugar a um tipo de falta, dura de engolir. Eu comecei o texto rindo de o Bariani parecer estar há 96 anos na janela. Depois o texto foi ganhando contornos de libelo, como se uma história quisesse chegar em outra e não intencionalmente e quisesse declarar algo de se protestar.. “desacontecendo, o vazio grita suas histórias”, essa foi uma das partes que mexeram comigo, bem como quando você menciona esta palavra bonita alpendre. Na Vila Nova, na casa popular alugada modernista de 5 cômodos onde vivi, tinha alpendre de cimento vermelho. Meu pai sentava numa cadeira de ferro que parecia uma teia de aranha, arredondada, moderníssima. Roubaram essa e a outra que fazia par com ela quando as pessoas começaram a roubar. Seu texto me levou lá, aonde agora é tudo brita, pois que virou estacionamento. Tem uma lágrima pra sair de mim do cacto que estou engolindo. Bonito texto, mas me enganou de primeiro (como diz minha mãe esse advérbio).