“Grande foi a loucura de Dom Quixote, e o foi porque era grande a raiz de que brotava, esse inextinguível anelo de sobreviver-nos, que é o manancial tanto dos mais desatinados desvarios quanto dos mais heroicos atos.” Assim Miguel de Unamuno, escritor espanhol e profundo estudioso da obra de Miguel de Cervantes, pinta uma das maiores personagens da cultura universal.
Em termos sinópticos, Alonso Quijano, fidalgo culto e cinquentão natural da Mancha, particularmente enfadado por seu modo de vida pouco nobre, decide-se por sair, a partir da coragem influída pela leitura assídua dos fantasiosos romances de cavalaria medievais, à cata de aventuras, “desfazendo agravos, acorrendo miseráveis, levantando viúvas e amparando donzelas pela força de seu braço”. Nasce Dom Quixote, a flor-mor da cavalaria andante, uma anacrônica profissão de armas, de fé.
Com efeito, a priori concebido como sátira às narrativas cavaleirescas, brevemente O engenhoso fidalgo Dom Quixote da Mancha provou a tese de Italo Calvino, segundo a qual o clássico é “aquele livro que nunca esgota tudo o que tem a dizer a seus leitores”. O manchego foi visto como escapista pelos racionalistas, herói imprescindível pelos românticos, utopista conservador pela modernidade, neurótico exemplar pelos psicanalistas e outros tantos vieses interpretativos foram-no razoáveis
ao longo do tempo, porque as páginas que contam sua grandiosa história não estancam-se em dizer quem são o valoroso Dom Quixote e o discreto Sancho Pança, o que viam da realidade e o que dela faziam.
De retorno às aspas que abrem este texto, para a estudiosa da obra cervantina Cristiane Agnes Stolet Correia, citando Unamuno, o protagonista “precisava ‘adentrar a totalidade das coisas visíveis e invisíveis’ e, para tanto, tinha que buscar ultrapassar os limites da sua existência. Alonso el Bueno começou a sentir necessidade de alimentar a própria imaginação, de autodenominar-se outro para sentir-se mais a si mesmo.” Deste desacerto ideológico sobrevieram as atitudes quixotescas, isto é, o culpar seus azares à obra de nigromantes malignos, o ver gigantes onde há moinhos de vento, o imaginar em rebanhos bovinos ou caprinos exércitos inimigos arremetendo um contra o outro. E, ainda mais importante e sobretudo cabal, o crer em si a capacidade de salvar o mundo, pois grande é a emergência de torná-lo melhor.
A obra de Miguel de Cervantes tornou-se uma das mais editadas, adaptadas e influentes ao longo de seus quatro séculos de existência. São diversas as suas geniais qualidades — verbi gratia, engenhosidade metalinguística sem precedentes, comicidade precursora das gags, intrincada relação autor-protagonista, enfim importâncias imediatas e futuras cuja melhor análise requereriam cada qual textos autônomos.
Entretanto, à guisa de exemplificar a extensão de sua influência, basta lançar olhos às comédias seminais do cineasta italiano Mario Monicelli, L’Armata Brancaleone (O Incrível Exército de Brancaleone) e Brancaleone alle Crociate (Brancaleone e as Cruzadas), cujo protagonismo cabe ao cavaleiro andante Brancaleone da Nórcia, francamente inspirado no célebre manchego, a reunir meia dúzia de incapazes (coxos, idosos, feiticeiras e anões) e convertê-los no plantel de seu exército pitoresco. O ditoso aventureiro, tão atabalhoado e insano a professar uma pureza de intenções já extinta, tanto realiza proezas como as mais desventuradas cacetadas. Isso porque, como Dom Quixote, tem fé em sua loucura, e desafiaria até a morte para provar a força de seu braço. Aliás, literalmente ocorre entre Brancaleone e a Morte um acordo e um duelo memoráveis.
A fé, portanto, contém a maior arma dos idealistas cavaleiros andantes. A fé em si e em todo gênero de desvarios em que acreditam, que não é exatamente inabalável (visto que também os valorosos duvidam dos despojos de suas empresas), mas aparece concreta. A fé sobremaneira na nobreza que os guia, como dito, muito além dos fracassos cômicos, rumo aos feitos mais esplêndidos ou libertários. Unamuno diz que o manchego como ninguém “soube dizer a pleno sentido: ‘Eu sei quem sou!’ Que cada qual tem que adorar seu eu e para poder adorá-lo fazê-lo digno de adoração.”
Não à toa, o estudioso refere-se ao Cavaleiro da Triste Figura também como el Caballero de la Fe, ao passo que diz de sua “generosa loucura” e “cordato egotismo”.
Personagens da natureza de Dom Quixote da Mancha e Brancaleone da Nórcia sujeitam-se aos mais diversificados julgamentos, e é essa a prova de sua complexidade abissal, a incluir o influxo do tempo futuro, alheio a eles. A loucura combatida pela sociedade reorganiza-se no heroísmo combativo dos individualistas? De que maneira mensurar o utopismo e o autoritarismo do libertário? O cavaleiro agiu tresloucadamente ou engendrou algum progresso? São perguntas que os séculos fazem a Quixote. São dúvidas que Quixote lega aos séculos.
Muito bem feito e argumentado.
Belíssimo comentário, brilhante e muito bem elaborado, de um minucioso estudo em detalhes de todas as nuances que os personagens requer. Só não me espantei com tanto brilhantismo de detalhes nesse comentário, depois que descobri que esse comentarista tão novo era filho do Escritor e Poeta Silvio Elmano, um Mestre com as palavras, um abraço, sucesdo
Muita habilidade com as palavras, um grande escritor desponta em uma época em que qualquer um escreve e tão poucos leem , surgirá sem dúvida escolhido com critério dos mais competentes críticos. Parabéns Paulo Manoel!
Muito bom! Abraços.
Link para o filme Brancaleone no Youtube em excelente qualidade. Nem o dvd que tenho em casa tem qualidade tão boa. https://www.youtube.com/watch?v=OR9koj7anvc