Nestes últimos dias de perdas tão dolorosas para a cultura brasileira, uma das vozes que se calaram foi a do escritor e psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza, que morreu no dia 16 de abril, no Rio de Janeiro, aos 84 anos, após um longo período de internação em consequência de um AVC. Já um autor e pesquisador reconhecido na área da psicanálise, Garcia-Roza começou sua carreira como romancista policial na maturidade, com quase 60 anos de idade, mas essa estreia tardia na literatura foi logo recompensada com um Prêmio Jabuti por seu primeiro livro, O Silêncio da Chuva (1996).
Em setembro de 1998, por ocasião do lançamento do seu segundo livro, Achados e Perdidos, Garcia-Roza me concedeu uma entrevista, publicada no suplemento cultural do jornal O Popular, que ERMIRA reedita a seguir. Na conversa por telefone, Garcia-Roza, falando do seu apartamento no Rio, discorreu sobre a sua paixão pela literatura policial, que vinha desde a adolescência, e de como conciliava a carreira de psicanalista e professor universitário com a de autor de histórias policiais, além de fazer uma interessante analogia entre o ofício do detetive e o do psicanalista e do filósofo. A entrevista traz uma curiosidade: o escritor ainda se mostrava um pouco indeciso com respeito ao futuro do detetive Espinosa, o personagem central que aparece no seus dois primeiros livros, e que seria o protagonista de quase todos os outros romances que iria escrever depois (12, no total). Confira:
O senhor tem uma carreira acadêmica respeitada como especialista na obra de Freud. Por que resolveu escrever romances policiais?
Eu sempre quis escrever ficção e senti que tinha chegado o momento. É como uma espécie de dead line – se não fosse agora, não seria nunca. Mas continuo a desenvolver um trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde coordeno um programa de pós-graduação em teoria psicanalítica. Atualmente, oriento algumas teses e devo lançar mais um livro na área de metapsicologia, na qual já tenho três volumes publicados.
Dashiell Hammett foi detetive particular antes de virar escritor policial. Rubem Fonseca foi delegado de polícia. Qual é a experiência que o senhor teve nesse universo?
Antes de começar a escrever, nenhuma. Quando fui escrever meu primeiro livro (O Silêncio da Chuva), visitei delegacias, o Instituto Médico Legal. A experiência me reservou algumas surpresas, mas também serviu para reforçar muito daquilo que eu já sabia a respeito da polícia.
Em Achados e Perdidos, o senhor faz uma descrição muito realista do modo de vida dos meninos de rua. O senhor teve alguma convivência com eles?
Convivência propriamente dita não. Mas eu vivo há 60 anos no Rio de Janeiro, e acompanho o problema dos meninos de rua desde o início. Também tenho amigos que trabalham com meninos de rua, inclusive um educador de rua, que puderam me dar informações sobre eles.
Em um dos seus livros sobre psicanálise, o senhor faz uma analogia entre o psicanalista e o detetive. O que ambos têm em comum?
Tanto o psicanalista como o detetive e o filósofo investigam algo. O crime também os liga. O detetive investiga um assassinato. Na psicanálise, o assassinato edipiano do pai é o ponto de partida. Na filosofia, o assassinato de Sócrates é o que motivou Platão a escrever.
Por que o senhor colocou o nome do filósofo Espinosa no seu personagem central? É apenas uma homenagem ou a escolha teve outras motivações?
É sobretudo uma homenagem. Mas o grande senso moral e ético do personagem pode também ser visto como uma referência a Espinosa.
Ainda sobre o delegado Espinosa, ele é um delegado incorruptível, sensível e que gosta de literatura. É possível encontrar figuras assim na polícia ou o personagem é apenas um ideal?
Sim, é possível encontrar policiais desse tipo. Eles são minoria, mas existem. Assim como há engenheiros honestos e desonestos, médicos honestos e desonestos, também há policiais honestos e desonestos. Não se pode generalizar. O problema é que o policial fica numa fronteira muito tênue entre a honestidade e o crime. É como o psicanalista com relação à loucura.
Espinosa parece agir mais movido pela intuição do que por uma capacidade de raciocínio extraordinária, que se observa em Poirot ou em Sherlock Holmes, por exemplo.
Mas essa é a forma como a polícia brasileira age. Não há tradição de investigação científica na polícia brasileira. Um Poirot entre nós seria muito artificial.
Essa característica mais instintiva do personagem e também o seu senso ético lembram os detetives Phillipe Marlowe, de Raymond Chandler, e Phill Archer, de Ross MacDonald. O senhor foi de alguma forma influenciado pelo romance noir norte-americano?
Bom, eu leio os autores norte-americanos desde quando eu tinha 16, 17 anos. Inegavelmente, eles me influenciaram, assim como os outros autores. Quanto à semelhança do Espinosa com o Marlowe, eu nunca tinha pensado nisso antes. Mas você tem razão, há alguma semelhança entre eles.
Nos seus dois romances, os crimes cometidos são desencadeados a partir de um equívoco. Isso seria uma metáfora sobre a banalização e a gratuidade da violência em nossos dias?
Não é nenhuma metáfora, a violência é gratuita mesmo. É o resultado da brutalidade dos centros urbanos, das grandes diferenças entre pobres e ricos.
Nos dois romances, as mulheres são o pivô central da trama. Mas a prostituta Flor, de Achados e Perdidos, parece ter recebido um tratamento mais cuidadoso. O senhor tem uma predileção pela personagem?
Eu de fato gosto muito dessa personagem. O engraçado é que o perfil exato dela não surgiu logo no primeiro momento. Ele foi se modificando à medida que a história evoluía. Flor é uma mulher muito fria, uma mulher que teve um passado sofrido, mas não se lamenta por isso. Ela se adapta às situações e tira proveito delas.
O Rio de Janeiro dos seus livros é uma cidade violenta, mas que não perdeu os seus encantos. O senhor acha que há muita propaganda negativa contra a cidade?
Sem dúvida. Eu conheço muitas cidades, mas garanto que nenhuma é tão bonita quanto o Rio de Janeiro. O problema é que, em uma cidade com 10 milhões de habitantes e com tantas diferenças sociais, toda essa beleza não vai livrá-la da violência, da marginalidade. Isso é inevitável. Todas as grandes cidades são violentas. São Paulo, e eu conheço muito bem a cidade, é muitíssimo violenta. Recife é violenta. Brasília é violenta. Só cidades com um aparato policial bem forte e organizado, como Londres, é que não têm tantos problemas com violência.
Autores de policiais como o senhor, Rubem Fonseca e Patrícia Mello têm conquistado sucesso de crítica e público no Brasil. No entanto, a literatura policial não é um gênero que se solidificou no país como em outros lugares. O que falta para criar um mercado de livros policiais nacionais? Há preconceito dos intelectuais brasileiros com relação ao gênero?
Não, eu não acho que haja preconceito com relação ao gênero. Há gente que gosta e gente que não gosta. O que é preciso é que haja um maior volume de bons autores nacionais. Porque ser um escritor de romances policiais não quer dizer necessariamente que se é um bom escritor. É preciso muito trabalho. Você citou, incluindo a mim, dois autores nacionais. Lá fora, também não existem tantos bons autores assim. Nos Estados Unidos, por exemplos, há cerca de dez.
Dentre os autores policiais atuais, quais o senhor destacaria?
Eu gosto muito do John Dunning e recentemente li Nó de Ratos, de Michael Dibdin, de que gostei muito. James Ellroy também é um bom autor. Outro que eu destacaria é Paul Auster, que não é propriamente um autor policial, mas publicou dois ótimos livros no gênero.
O senhor sempre acompanha a produção internacional na área?
Sim, eu leio tudo o que é publicado.
O senhor pretende escrever outro livro com o personagem Espinosa? Ele poderia se transformar em personagem de uma série?
Eu comecei a escrever outro livro com ele, mas não sei ainda quando ficará pronto. Pode ser que ele apareça em outros livros, pode ser que não. Personagens fixos são muito comuns nos romances policiais. Rex Stout, por exemplo, escreveu mais de 50 livros com o Nero Wolfe.
O delegado aposentado Vieira, que se torna parceiro de Espinosa em Achados e Perdidos, aparecerá nesse outro romance?
Não, acabou. Eu gosto muito desse personagem, acho que ele é muito completo. Por isso mesmo, ele não aparecerá. O Espinosa é meio indefinido, o que faz com que fique mais fácil colocá-lo em outros romances – há sempre algo a acrescentar ao personagem. Por exemplo, em O Silêncio da Chuva, ele era um simples inspetor de polícia. Em Achados e Perdidos, ele aparece como delegado de polícia por dois motivos: primeiro, como ele é formado em Direito, seria natural que prestasse um concurso para delegado. Segundo, porque, como delegado de polícia, ele sempre está mudando de lugar. Essa mobilidade é uma característica da polícia carioca. Isso ajudou a dar mais consistência ao romance.
Achados e Perdidos tem trechos bem “cinematográficos”, como o do elevador, no final do livro. O senhor se sente influenciado, de alguma forma, pelo cinema, sobretudo pelos thrillers policiais?
Não, eu gosto muito de cinema, vejo muitos filmes, mas como um espectador normal. O meu trabalho é mesmo com a palavra.