É quase um lugar-comum na filosofia dizer que o que diferencia os seres humanos dos demais animais é a consciência de que os primeiros têm acerca da própria morte. Mas há uma outra característica, menos citada entre os pensadores, que também nos faz únicos no reino animal: nossa capacidade de rir. “Não há cômico fora do que é propriamente humano”, escreveu Bergson. Sim, somos os únicos animais que riem, e somos também os únicos que sabem que estamos destinados à morte. Não seria então o riso – conforme questiona o historiador francês George Minois, no ensaio História do Riso e do Escárnio – uma forma de nos consolar desta amarga certeza?
Se o riso nos consola, isso não significa que ele se reduza a uma mera válvula de escape, um jeito de se furtar a encarar de frente a dura realidade que nos cerca. Pelo contrário. Minois se vale das palavras de outro estudioso do tema, Robert Favre, para afirmar que rir é uma “maneira de enfrentar as coisas, de se situar, de se afirmar diante das ameaças, da incongruência ou da insipidez de todos os horrores da vida cotidiana”.
Rir é, acima de tudo, um ato de liberdade.
Certamente é por conta dessa faceta que o riso sempre foi tão estigmatizado. Se é uma manifestação da liberdade, o riso é potencialmente subversivo. O riso dessacraliza, desmitifica, demole a fachada solene das certezas mais inabaláveis. Não à toa, por muito tempo foi considerado pela Igreja Católica como o domínio do diabo – para uma corrente majoritária da teologia, durante a Idade Média, era praticamente uma heresia acreditar que Jesus tenha rido uma única vez durante sua passagem pela Terra.
Entregar-se ao riso era degradar-se, ceder à fraqueza humana.
Passando para os poderes seculares, as tiranias são particularmente mal-humoradas. O fascismo mobiliza as multidões para exaltar a força, jamais a alegria – esta confunde-se com espontaneidade, algo que os totalitarismos não podem suportar. Mas, mesmo sob a pior das dominações, o riso ainda resiste como o último espaço da liberdade.
O historiador George Minois narra em seu livro uma anedota corrente que os russos costumavam repetir durante os anos mais sombrios do stalinismo: “O que é o capitalismo? É a exploração do homem pelo homem. E o comunismo? Exatamente o contrário.”
Num comentário que escreveu sobre sua peça A Resistível Ascensão do Homem Arturo Ui, sátira sobre a chegada de Hitler ao poder, Bertold Brecht, certamente já antevendo as críticas que lhe seriam dirigidas por compor uma comédia a respeito de um acontecimento tão trágico, afirmou o seguinte: “Os grandes criminosos políticos devem ser expostos por todos os meios, especialmente pelo ridículo.”
Mais adiante, ele observa que o fato de Hitler ter se lançado a “grandes empreendimentos” não significa que ele fosse um “grande homem”. Não é à toa que o melhor retrato de Hitler, até hoje insuperável, aparece em O Grande Ditador, nas cenas em que Chaplin surge na pele do líder totalitário expondo-o como de fato era: um bufão, perigoso sem dúvida, mas um bufão.
Dissemos que, por muito tempo, o riso foi considerado pela Igreja como terreno do demônio. Porém, a este riso diabólico, que desdenha e afronta a criação divina, contrapõe-se outra imagem: a da alegria angelical, que se regojiza com a ordem do universo. Entre anjos e diabos, no entanto, o homem é ainda a única criatura capaz de rir de si mesma. Rir dos seus devaneios, das suas fantasias, das suas próprias desgraças, dos mitos que ele constrói e venera.
Porque rir é, antes de tudo, provar-se humano, demasiadamente humano.
Como dizia Cartola, “rir pra não chorar”.