Um Copo de Cólera. Sempre achei este um dos nomes mais bem pensados com que alguém poderia batizar um livro. Raduan Nassar é o autor desta proeza, cuja genialidade não fica apenas no título. Todo o seu romance é uma viagem sombria pela alma humana, esgarçada por ressentimentos, desconfianças, falsas tréguas, hipocrisia e cinismo. Um nome tão bom quanto este para um livro só mesmo As Vinhas da Ira, do norte-americano John Steinbeck, espécie de Vidas Secas do Meio-Oeste americano, em que uma família se desfaz sob as tragédias que encontra em sua fuga da seca.
O Brasil de hoje, um País em muitos sentidos destroçado por crises sobrepostas, poderia gerar um livro assim, em que sentimentos humanos dos mais torpes se congraçam com contextos sociais dos mais pérfidos, uns alimentando os outros sem cessar. Uma conjunção trágica de fatores que nos faz enfrentar a maior pandemia em um século, que vai resultar na mais profunda crise econômica mundial desde a Segunda Guerra Mundial, sendo dirigidos pelo pior presidente da história da República. É a chamada “tempestade perfeita”. Uma tempestade de raiva, rancores.
“Uma conjunção trágica de fatores que nos faz enfrentar a maior pandemia em um século, que vai resultar na mais profunda crise econômica mundial desde a Segunda Guerra Mundial, sendo dirigidos pelo pior presidente da história da República.”
Mas como se tudo isso não bastasse, ainda tempos que nos encarar no espelho neste momento de incerteza, pessimismo e morte, e o que vemos é terrível. Nossa imagem refletida nos devolve uma figura que se liquefaz enquanto nação, um povo que vai deixando pelo caminho os mais básicos princípios de solidariedade e empatia. Os instantâneos abomináveis que formam este panorama indizível acumulam-se prodigamente. Demonstrações de desrespeito e desumanidade que vêm não só das altas autoridades do País, mas também, numerosas, do cidadão comum.
O aposentado chuta cruzes que homenageavam os milhares de mortos pela Covid-19 e acha que isso é um gesto patriótico. Celerados acreditam que o vírus que mata milhares simplesmente não existe. Um grupo se acha no direito de invadir hospitais ou de agredir profissionais de saúde para apoiar um projeto político-ideológicos insano. Policiais aumentam sua conduta violenta para coibirem protestos que denunciam esta mesma forma de agir ignóbil, com fartas doses de racismo. Jornalistas são agredidos, xingados, ameaçados porque levam ao público informação científica.
“Um País atolado em suas próprias invencionices, acreditando piamente nas besteiras que produz e difunde em correntes de WhatsApp. Um País que vê crescerem e prosperarem células extremistas de direita, neonazistas, supremacistas brancos.”
Este é o Brasil de 2020. Um País duramente afetado por um vírus que, para muitos aqui, tem carteirinha do Partido Comunista Chinês. Um País atolado em suas próprias invencionices, acreditando piamente nas besteiras que produz e difunde em correntes de WhatsApp. Um País que vê crescerem e prosperarem células extremistas de direita, neonazistas, supremacistas brancos. Um País que ruma para a UTI sem ter UTI para usar. Um País que insiste em se entupir de um remédio que não cura e ainda faz mal para a saúde. Um País que parece ter assumido certo instinto suicida.
Claro que todo esse conjunto de comportamentos, muitas vezes, está circunscrito a um grupo específico de pessoas, mas a reverberação de tais discursos em si já demonstra a permeabilidade que tais argumentos, baseados num poço sem fundo de ressentimentos, encontram hoje. Qual nome de um romance que abordasse o atual momento do Brasil, nesse seu labirinto de ataques, em seu momento de fragilidade sanitária e democrática? Quando vi o presidente beber leite em uma de suas lives, com notório simbolismo atroz, pensei: Raduan Nassar tem razão. É um copo de cólera.