O que faz um útero? O que faz um punho? Um Útero é do Tamanho de um Punho (Cosac Naify, 2012, 96 páginas; Cia das Letras, 2017), livro de poemas da gaúcha Angélica Freitas, oferece ferramentas para pensar a dimensão metafórica dessa dicotomia.
O livro em si – que traz 26 poemas – já é uma riqueza de formas e tropos. Não há nada mais sugestivo e concentrado de significado, no entanto, do que o próprio título.
Quando o leitor lê “um útero é do tamanho de um punho” já sente o potencial luminoso desse decassílabo. Útero e punho são duas imagens poderosas. Duas forças a partir das quais o mundo se molda.
E são tantos mundos moldados, são tantas eclosões resultantes do choque entre útero e punho, tantas cadeias de novidades e destruição, de vida e morte. Civilizações inteiras nasceram e desapareceram a partir de úteros e punhos.
Abortos também ocorrem a partir de úteros e punhos, todos os dias; uma inflamação uterina, no primeiro caso, uma masturbação, no segundo. Vidas e mortes são geradas por força do punho; um estupro, por exemplo, um soco no ventre, por exemplo.
O útero é um órgão feminino. O punho é uma forma anatômica a partir de um membro humano (masculino e feminino), a mão, na sua estreita ligação com o pulso. Mas a imagem do punho se liga mais ao homem e à sua força. Suas conexões vão ao cerne das chamadas armas brancas.
Um punho se desfaz no gesto do afeto, embora continue punho, mas aberto. Neste caso, ele pode ser afago e não porrada. Ele pode ser a mão que acolhe. E é mais ou menos o que a poeta propõe.
O outro lado da moeda, no entanto, tem mais representatividade. E ela também propõe isso, o lado, justamente, que levanta as questões mais pungentes da leitura crítica. “Um útero é do tamanho de um punho/ não pode dar soco.” Mas o punho, sim, o punho é a metáfora por excelência da violência.
Uma espada é sustentada pelo punho. Uma faca, e mesmo aquele que foi batizado em sua homenagem, o punhal, todos eles estripam, cortam, ferem, matam a partir do movimento do punho.
Em 2001: Uma Odisseia no Espaço, filme de Stanley Kubrick, baseado no livro de Arthur C. Clarke, a cena do macaco matando o outro com um osso e depois lançando o osso ao ar, para logo adiante vermos criar-se a civilização mais avançada em tecnologia e conquista espacial, tem o punho como elemento sustentador do gesto.
Em O Lobo de Wall Street, filme de Martin Scorsese, homens se masturbam para manter a tensão hormonal (testosterona) e se sentirem machos na hora de enfrentar a guerra no front da Bolsa de Valores, do mercado financeiro. Homens e punhos crescem alinhados.
Jigi di pirlindi
Em seu livro, Angélica Freitas não fala exatamente dos homens. Ela fala das coisas da mulher. Sua poesia pulsa a verve feminina. Seu ponto de vista é o das mulheres que sabem contestar, sabem o que querem e o que merece ser negado.
Muitas vezes, o que se apresenta no interior dos versos é uma brincadeira, ou uma sensação de se estar num jogo de parlendas, em brincadeiras de roda:
“im itiri i di timiminhi di im pinhi”, diz o primeiro verso de uma das estrofes do poema homônimo. E segue:
“quem pode dizer tenho um útero
(o médico) quem pode dizer que funciona (o médico)
i midici”
E aqui já dá pra entender o que são aquelas palavras do primeiro verso. Mas ela segue, como quem fala e pula cordas:
“o medo de que não funcione
para que serve um útero quando não se fazem filhos
para quê
piri qui
se tenho peito tenho dois
o mesmo vale pros rins
tenho duas orelhas
minis i vincint vin gigh
piri qui”,
diz o sujeito poético, que assina como a autora, Angélica Freitas.
O livro se divide em sete partes: “Uma Mulher Limpa” (com três poemas), “Mulher de” (dez poemas), “A Mulher é uma Construção” (sete poemas), “Um Útero é do Tamanho de um Punho” (um poema), “Três poemas com Auxílio do Google”, “Argentina” (um poema) e “O Livro Rosa do Coração dos Trouxas” (um poema).
O que se lê em cada verso é uma tremenda diversidade desse fruto que é a mulher e sua história, inclusive o homem, fruto do seu ventre. No universo de valores cristãos, todos aprendemos que até Deus morou no ventre de uma mulher.
O que vemos é uma desconstrução da figura da mulher, a mulher ligada ao imaginário machista de nós homens, e uma tentativa, um projeto, um ideal de postura feminina, uma postura crítica, reformista, revolucionária no sentido da transgressão, mas também do novo lugar de onde fala, de onde fala da solidão, da exploração, da independência, das conquistas, do amor ou da falta dele.
No poema “Uma Mulher Limpa”, lemos:
“uma mulher gorda
incomoda muita gente
uma mulher gorda e bêbada
incomoda muito mais
uma mulher gorda
é uma mulher suja
uma mulher suja
incomoda incomoda
muito mais.”
Em “Uma Canção Popular (sec. XIX-XX):”, ela usa a entonação de melodias populares para dizer coisas como:
“era uma vez uma mulher que não perdia a chance de enfiar o dedo no ânus
no próprio ou no dos outros
o polegar, o indicador, o médio
o anular ou o mindinho
nos outros, era sempre o médio
por ela, enfiava logo o polegar
não, nenhuma consequência”.
Em “Pós”, ela é pessimista com tudo isso.
“os homens as mulheres nascem crescem
veem como outros nascem
como desaparecem
desse mistério brota o cemitério
enterram carcaças depois esquecem”.
Força voltaica
Nesta coletânea de poemas, o homem aparece como resultado da troca entre masculino e feminino, e também como algoz, principalmente. Aparece, portanto, como punho, como força destruidora do mundo e da própria mulher.
Em Um Útero é do Tamanho de um Punho, tudo parece cair leve como neve. Mas, como a neve, só parece. A força voltaica do torvelinho de imagens e emoções presente nos poemas passeia pela história humana, pela mitologia, pelo cotidiano, pelos estereótipos, pelos sentimentos e pela ressignificação da figura feminina e da figura dos gêneros LGBTQ.
No poema “Argentina”, ela nos expõe:
“II
os churrascos são de marte
e as saladas são de vênus
me dizia uma amiga que os churrascos
cabem aos homens porque são feitos
fora de casa”
E em “O Livro Rosa do Coração dos Trouxas”, ela mostra como a mulher deve agir:
“I
eu quando corto relações
corto relações.
não tem essa de
briga de torcida
todos os
sábados.
é a extinção do estádio.”
Em “Mulher Depressa”, ela é provocativa, reveladora da frágil, covarde e melindrosa posição do homem (pelo menos do homem que tenta acompanhar as mudanças):
“vamos lá companheiro
vamos lá que eu tenho pressa, companheiro
o mundo inteiro está mudando, companheiro
o dia inteiro, o que se passa, companheiro”
E o companheiro não sai do banheiro, com uma dor de barriga interminável. Chamou-nos a todos de cagões, já que não podemos nos defender da imensa memória desde as cavernas, tampouco entramos na luta contra o machismo pra valer.
O que nos leva a refletir: há os que queremos mudar, mas confusos; são os que não saem do banheiro. E há os que resistem, falam atrocidades, mas, provavelmente, também estão no banheiro. E há os monstros.
O poema mais emblemático do livro é o que lhe empresta o título.
Ao longo dos versos, ele vai se configurando com discursos, aula de anatomia, intersecções históricas, ora ar professoral, ora ar puericultural, com rimas externas em certas estrofes, em versos livres na maioria das vezes.
Dedo no ânus
No ano passado, no mês de setembro, Um Útero é do Tamanho de um Punho foi objeto de malograda discussão no plenário da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc), numa tentativa de o deputado Jessé Lopes (PSL) barrar a adoção do livro à lista de leitura obrigatória para o vestibular 2020 da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).
Segundo reportagem publicada no site da Alesc, a alegação era de que os poemas ferem os valores cristãos, e que deveriam ser lidos por alguém maior de 18 anos que quisesse saber o tamanho de um útero e se um punho caberia dentro dele.
O interessante é que, nesta rápida avaliação, vê-se que o deputado perdeu o fio de raciocínio logo na largada, quando achou que dois objetos do mesmo tamanho pudessem caber um dentro do outro. Um útero é do tamanho de um punho, lembra?
Questionamento mais pertinente, mas infelizmente por motivos equivocados, foi feito pela deputada Ana Campagnolo (PSL): “Qual a necessidade do acadêmico ler um livro que faz referências a enfiar o dedo no ânus?”
É o tipo de pergunta que se faz, quando se vai ao museu, ou a uma exposição de arte, e vê-se um carro dependurado por cabos e questiona-se: “mas, o que que esse carro está fazendo aqui, desse jeito?” Eis aí uma pergunta que pode provocar tantas respostas, do ponto de vista da arte e da sua relação com o mundo. É uma pergunta que os professores deveriam fazer a seus alunos.
A rejeição desses deputados, e correligionários, ao livro foi por questões morais, zero sobre considerações estéticas com fundamento nos procedimentos da contemporaneidade.
Alguém, inclusive, chegou a evocar os clássicos (que também são contemplados na lista de todo vestibular, incluindo os de SC – talvez ele estivesse se referindo ao monólogo de Molly Bloom; acho que não). O coro de rejeição certamente não é pequeno. Os versos de Angélica Freitas também não.
“um útero é do tamanho de um punho
num útero cabem capelas
cabem bancos hóstias crucifixos
cabem padres de pau murcho
cabem freiras de seios quietos
cabem as senhoras católicas
que não usam contraceptivos
cabem as senhoras católicas
militando diante das clínicas
às 6h na cidade do méxico
e cabem seus maridos
em casa dormindo
cabem cabem
sim cabem
e depois vão
comprar pão”
E há versos como estes, também objeto de repúdio de nobres parlamentares catarinenses:
“o útero fica
entre o reto
e a bexiga
uma das extremidades
se abre na vagina
outra é conectada
às duas tubas interinas.”
No reino dos valores
Poesia é arte, e arte só tem serventia se sua estética transgredir os valores e a própria linguagem. Não existe poeta ingênuo, disse Paul Valéry (se é ingênuo, não é poeta), e para falar de certos temas, para penetrar o reino dos valores, das intimidades, às vezes é necessário dar às coisas seus devidos nomes, não porque tudo fica claro, mas porque eles, os nomes, são voltaicos, eles concentram histórias.
É bom lembrar que a poesia está cheia de versos com nomes de palavrão, como no Poema Sujo, de Ferreira Gullar, que diz:
“azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como
uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
entrando-nos em ti”,
Como os poemas eróticos de Carlos Drummond:
“Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro.”
Ou
“A carne é triste depois da felação.
Depois do sessenta-e-nove a carne é triste”
Ou
“As mulheres gulosas que chupam picolé
– diz um sábio que sabe –
são mulheres carentes
e o chupam lentamente
qual se vara chupassem.”
Ou Como Glauco Mattoso:
“Si um poema se publica,
se mantém no original,
mas, na falla, ‘phallo’ é ‘pica’
e é ‘suruba’ a ‘bacchanal’.”
Os versos citados não têm filtros metafóricos, embora sejam recursos de linguagem, ora metáfora, ora metonímia. Mas eles têm legitimidade poética. Buscam ampliar a imagem do desejo, a fúria do sexo, atravessam a fechadura do privado para alcançar o público, o social, escandalosamente.
Os professores não teriam a ousadia necessária de levá-los à sala de aula do ensino médio. Não é o caso de Um Útero é do Tamanho de um Punho, que pouco se mostra abertamente erótico, porque não é seu propósito, embora toque em áreas ligadas ao sexo e à sexualidade, porque é impossível falar de útero como metáfora da mulher e não falar disso, de suas representatividades e seus fundamentos morais.
Dicotomia
Angélica Freitas é poeta e tradutora. Seu primeiro livro é Rilke Shake, de 2007. Publicou uma graphic novel intitulada Guadalupe: uma Roadtrip Fantástica. Um Útero é do Tamanho de um Punho é seu terceiro livro, o segundo, portanto, de poemas.
Analisando os elementos do título, útero e punho, se fôssemos pensar em termos de características, os dois seriam aliados; mas, em termos de poder, os dois são antagônicos, a posteriori.
Imaginemos uma cena hipotética, metafórica ou mesmo histórica (e até machista): dois homens trocam socos na disputa por uma mulher. O vencedor a leva para cama, casando ou não, e faz um filho nela.
Esse filho, a julgar pelo perfil do pai, poderá levar uma vida horrorosa no decurso de sua construção de macho. Mas também poderá ter uma vida cheia de amor, caso a mãe seja como a maioria das mães (obviamente, não estou levando em conta o contexto social, que pode ser o inferno).
Neste caso, o útero gera vida e afeto; o punho gera violência e prazer. A literatura é um campo fértil do saber, e as brechas deixadas pela criação poética, sustentada na concentração de significados, nos leva a reflexões sobre como é a vida, inclusive a vida humana, gerada em útero, mas que muitas vezes se molda apenas a punhos.