[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Iara, a mulher verde
Neste país de coisas em excesso
o sol me agride, o azul passa da conta.
No entanto, os poucos beijos que te peço
o teu amor futuro me desconta.
De tanto céu tenho a cabeça tonta.
O meu jornal é todo em verde impresso.
Só tu, a quem já um pássaro amedronta,
te fechas no mais íntimo recesso.
No país do excessivo, és muito pouca.
Vê a borboleta jovem, como esvoaça.
Vê como nos convida a manhã louca!
Por que seres assim, se tudo é assombro,
se a própria nuvem branca – e com que graça –
só falta vir pousar em nosso ombro?
Dentro da noite (1915)
⁕ ⁕ ⁕
[2]
Elegia para minha mãe
Só me resta agora
esta graça triste
de te haver esperado
adormecer primeiro.
Ouço agora o rumor
das raízes na noite,
também o das formigas
imensas, numerosas,
que estão, todas, corroendo
as rosas e as espigas.
Sou um ramo seco
onde duas palavras
gorjeiam. Mais nada.
E sei que já não ouves
estas vãs palavras.
Um universo espesso
dói em mim com raízes
de tristeza e alegria.
Mas só lhe vejo a face
da noite e a do dia.
Não te dei o desgosto
de ter partido antes.
Não te gelei o lábio
com o frio do meu rosto.
O destino foi sábio:
entre a dor de quem parte
e a maior – de quem fica –
deu-me a que, por mais longa,
eu não quisera dar-te.
Que me importa saber
se por trás das estrelas
haverá outros mundos
ou se cada uma delas
é uma luz ou um charco?
O universo, em arco,
cintila, alto e complexo.
E em meio disso tudo
e de todos os sóis
diurnos, ou noturnos,
só uma coisa existe.
É esta graça triste
de te haver esperado
adormecer primeiro.
É uma lápide negra
sobre a qual, dia e noite,
brilha uma chama verde.
Um dia depois do outro (1947)
⁕ ⁕ ⁕
[3]
O tocador de clarineta
Quando ouvires o pássaro
cantar em frente do teu quarto,
naturalmente em vão,
não penses
que sou eu que aí vim tocar,
não.
Quando o vento disser,
ao teu ouvido de mulher,
uma palavra
branca e fria como a cerração,
não penses que o vento fui eu,
não.
Quando receberes
uma carta anônima, trazida
por secreta mão
– quem será que assim me acusa? –
eu é que não serei,
não.
Quando ouvires, porém, no escuro,
a goteira caindo
sobre o triste chão, aí, então,
serei eu que estou batendo
na pedra
do teu coração.
Poemas murais (1950)
⁕ ⁕ ⁕
[4]
Canto incivil
Basta estar vivo
pra ser subversivo.
(Ou subservivo).
Basta não figurar
no registro civil
pra ser incivil.
(Ou vil, pra encurtar a palavra).
Basta ser incivil
pra não ser ninguém.
Basta não ser ninguém
pra ter o apelido
que a polícia dá
a quem não é ninguém.
Tinha eu dois nomes:
Zebedeu,
que a miséria me deu.
E “elemento subversivo”
que a polícia me deu.
E apenas uma dor:
a que a vida me deu.
E eis-me aqui, incivil,
(ou vil, pra encurtar a palavra).
Uma patada de cavalo
em meio do comício
e eis-me aqui, estendido em decúbito
dorsal.
(Ou já cortado ao meio,
sem dor, nem sal).
Montanha-russa (1960)
⁕ ⁕ ⁕
[5]
Rotação
a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
de novo a esperança
na esfera
a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
na esfera
a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
na esfera
Jeremias sem chorar (1964)
Perfil
Cassiano Ricardo Leite nasceu em São José dos Campos-SP em 26 de julho de 1895 e morreu no Rio de Janeiro em 14 de janeiro de 1974. Foi poeta, jornalista e ensaísta. Formou-se em Direito. Como jornalista, foi redator do Correio Paulistano e dirigiu A Manhã. Fundou várias revistas literárias e culturais. Ingressou em 1937 na Academia Brasileira de Letras. Em 1952, foi designado para dirigir o escritório comercial na embaixada brasileira em Paris. Após a Semana de Arte Moderna, liderou um movimento de reforma literária por meio dos grupos Verde-Amarelo e Anta, ambos de caráter nacionalista, e que reuniam intelectuais como Raul Bopp, Menotti Del Pichia e Plínio Salgado. Resumindo um trecho do ensaio de Mário Chamie, em sua Introdução aos Poemas escolhidos (Cultrix, 1965, p. 7-8), os seus primeiros livros podem ser associados ao parnasianismo e ao nacionalismo romântico. Na sua trajetória poética, porém, advirão ainda outras duas fases: uma, que abandona o imaginário cromático e assume o lirismo introspectivo, enquanto outra, mais experimental, que representa a sua vinculação com as linguagens de vanguarda. A sua obra poética compreende os seguintes livros: Dentro da noite (1915), A frauta de Pã (1917), Jardim das Hésperides (1920), A mentirosa de olhos verdes (1924), Vamos caçar papagaios (1926), Borrões de verde e amarelo (1926), Martim Cererê (1931), Deixa estar jacaré (1931), Canções da minha ternura (1930), O sangue das horas (1943), Um dia depois do outro (1947), A face perdida (1950), Poemas murais (1950), 25 sonetos (1952), O arranha-céu de vidro (1956), João torto e a fábula (1956), Poesias completas (1957), Montanha-russa (1960), A difícil manhã (1960), Jeremias sem chorar (1964), Poemas escolhidos (1965). Ao lado de sua produção poética, podem ser destacados trabalhos em prosa, entre os quais Marcha para o Oeste (1959), O homem cordial (1959) e Algumas reflexões sobre a poética de vanguarda (1964). Os seus poemas foram traduzidos para diversas línguas. Alguns estudos foram dedicados à sua poesia, como Laboratório poético de Cassiano Ricardo, de Oswaldino Marques, Palavra-levantamento na poesia de Cassiano Ricardo, de Mário Chamie, e Estudos sobre a poética de Cassiano Ricardo, de Oswaldo Mariano.