“A velha Paris não é mais! (uma cidade
Muda mais rápido, ai, que um coração mortal);
[…]
Paris muda! porém minha melancolia
Não!, andaimes, palácios novos, avenidas,
Blocos, para mim tudo vira alegoria,
E mais que as pedras, pesam lembranças queridas.”
(Baudelaire, “O cisne”, As Flores do Mal)
Quando resolvo escrever meu primeiro texto para Ermira sobre a presença dos terrenos baldios no centro de Goiânia, a própria existência das cidades se torna baldia.
O texto, então, antes mesmo de começar, precisa tomar outro rumo: ao invés de uma microcartografia do terreno baldio, se torna uma macrocartografia sensorial do vazio, da cidade baldia.
Toda espacialidade é também – inexoravelmente – temporal. O espaço acumula tempos. E o tempo desvirtua espaços. Estas linhas tratam de uma espacialidade que se efetivou em uma curta temporalidade. Diz sobre o início desta realidade de exceção permanente, que compõe uma época que é um prazo, como escreve Paulo Arantes no livro O Novo Tempo do Mundo.
Este é um texto sobre as cidades brasileiras na segunda quinzena do mês de março, trata de um passado remoto, avança sobre uma certa arqueologia urbana da quarentena. Almeja recordar um movimento de esvaziamento das cidades em favor da vida. Quer lembrar do curto período que se retirar do espaço público foi um ato de cidadania.
Momento em que a dialética da presença-ausência ganhou novos contornos.
Momento em que o vazio próprio dos terrenos baldios parece se alargar para o meio das ruas e avenidas. Não nascem flores no asfalto como gostaria o poeta, mas o mato se alastra sorrateiro pelo meio-fio, mato que mora no baldio, rua que vira baldia.
A paisagem dos grandes centros urbanos no Brasil totalmente tomada pela cara do domingo. Irreconhecíveis segundas e terças-feiras: tudo um imenso domingo. Domingo nas tantas avenidas Presidente Vargas deste país, domingo continuado semana adentro da Avenida Anhanguera. Domínio do domingo na Avenida Consolação. A cidade dominada pela paisagem de domingo.
Condição que traz à paisagem urbana um preenchimento próprio do esvaziar dos corpos no espaço. Que paralisa a paisagem, que imobiliza a cara do centro da cidade. O olho urbano, o olho que mora e se move pela cidade é acostumado a ver movimentos sobrepostos. Os fixos preenchidos pelos fluxos. A paisagem da cidade que muda mais rápido que o coração dos mortais é aquela em que corpos e máquinas incessantemente se movem no tempo, transformando o espaço. A cidade que é filme, sem o movimento dos corpos e coisas, vira foto.
O silêncio que compõe esta paisagem dominante na segunda metade de março não é exatamente aquele do sossego e do descanso próprio dos domingos. O silêncio deste domingo continuado é abafado, sufocante. Silêncio que tem cara do medo misturado com cuidado e uma pitada de política pública. Medo que tem cheiro de novo, que veio sem sobreaviso. Um desconhecido que se instala no meio de nós, nós no meio do medo.
O barulho estridente e sobreposto de tantas sonoridades daqueles dias não vinha pelos ouvidos, vinha na memória, vinha em saudade das sonoridades que compõem o balé caótico do urbano. Saudades da sinfonia dos ruídos estridentes, dos barulhos eloquentes. Vazio urbano traduzido em falta das sonoridades: vozes, motores, música do gás, buzina da moto, choro de criança, conversa de velhos, buzina de algodão-doce, o preço da bacia de cebolas que sai da boca do feirante, o som do amolador de facas, a voz do ambulante no farol. A cidade em estado de som. A sobreposição dos sons que compõem o estado da cidade.
Tudo vira som de domingo. Um domingo sem feira.
A cidade que é totalmente tátil, nessa segunda quinzena de março de 2020, se vê diante de um novo paradigma: cada toque carrega um risco, cada corpo e cada objeto viram uma bomba viral em potencial.
Tato e o olfato viram os mais letais dos sentidos. Contato que vira contágio. A cidade vira um conjunto de coisas e pessoas em que não se pode encostar: pra cada tato um tanto de álcool.
A letalidade da mercadoria levada e não lavada. O risco invisível do ar que adentra a narina. As máscaras escondem o rosto e, por debaixo delas, são raros os risos.
O vírus põe em xeque o conjunto de sentidos que compõem a cidade, uma nova geografia urbana sensorial se anuncia, e esta não se esvai junto do curto período em que as cidades brasileiras se esvaziaram, ela veio para ficar. É feita de novas instâncias da dialética das presenças-ausências.
Se a ausência da sobreposição sonora tão característica da urbe e da paisagem dominantemente parada durou pouco tempo nas cidades brasileiras, a drástica transformação das formas de tocar e de respirar na cidade veio como presença permanente.
No ar, a letalidade não é excepcional, vira um estado permanente.
No plano tátil, tudo vira a presença permanente da restrição, a ausência do toque. Os corpos que circulam pelas cidades brasileiras já não se abraçam, não beijam e não mais apertam as mãos, são corpos apartados pelo risco do contágio. A cidade perdeu um dos seus sentidos mais profundos, agora é menos palpável, é inteiramente intangível.
E por qual motivo as cidades brasileiras já não são mais um imenso domínio de domingo? Por que a paisagem não segue dominada pelos fixos e pela ausência de fluxos? Por que os barulhos voltaram?
Definitivamente não foi por um bom motivo. Não foi a velha normalidade que retornou, foi a normatização da morte que se instaurou. Os governos estaduais começaram aquela segunda quinzena de março atuando em consonância com as orientações da Organização Mundial da Saúde e adotaram a única medida de fato eficiente até aqui para lidar com a pandemia: o isolamento social. Mas ao longo de abril, maio e junho, na contramão de qualquer racionalidade e lógica em favor da vida, na medida em que as mortes foram substancialmente aumentando, estes mesmos governos estaduais passaram a flexibilizar a quarentena (a defesa da vida, portanto) em favor da pressão do mercado.
Não faço menção ao governo federal, pois este nem por um instante se empenhou efetivamente em defesa da vida.
Flexibilizar é o termo mais recorrente no discurso dos necroliberais. Mora nesta palavra algum indício de desrespeito à dignidade da vida. Flexibilizar leis trabalhistas, flexibilizar a aposentadoria, flexibilizar direitos sociais, flexibilizar a quarentena. Flexibilizar o respeito à vida humana!
A cidade agora está cheia, os hospitais e cemitérios também.
Ermira agradece ao fotógrafo Weimer Carvalho por gentilmente ter cedido as fotos que ilustram este ensaio.