Como sagaz observador da sociedade inglesa, Sherlock Holmes encarnou – de forma pernóstica, esnobe, ranzinza, às vezes preconceituosa, todas estas características misturadas com cocaína – o tipo de detetive que tinha na razão e, portanto, na ciência, a base de seu método de investigação. O seu cânone – um dos mais ricos do gênero – é composto de 56 contos e quatro romances.
Rivalizando com a Scotland Yard, Holmes empunhava a sua lupa e compartilhava com os policiais de distritos, de forma camarada, os resultados de suas diligências. Em muitos aspectos, é precursor de um tipo de herói que luta por valores universais, tais como território, justiça, família, liberdade – enfim, a velha Ordem burguesa que procura organizar o mundo à sua semelhança.
Sob os estertores do período vitoriano, Holmes pertencia a uma sociedade em que o criminoso era amador e ingênuo. Sem enigmas desconcertantes, os assassinatos eram comuns, os golpes previsíveis e as trapaças pouco engenhosas, a ponto de não exigirem tecnologias sofisticadas para a sua solução. À sua época, o crime começou a ser combatido de modo sistemático.
“O meu cérebro, Watson, é único! O resto de mim é um mero apêndice.” Em outra circunstância, jactava-se de outro modo: “O ar de Londres ficou mais puro graças à minha presença.”
Não foi sem grandes desafios que o seu adversário mais letal e ardiloso, o professor Moriarty, só apareça em três títulos: dois contos e um romance. No confronto final, Moriarty bebe as águas da catarata Reichenbach, nos Alpes suíços. Holmes reaparece, sem mais nem menos, três anos depois, para surpresa de Watson, que o considerava morto. O imprevisível detetive estava de volta, sem dar satisfações sobre o seu sumiço.
Embora seja às vezes ridicularizado e considerado inepto, Watson é o coadjuvante que todo herói gostaria de ter ao seu lado: leal, disponível, solidário – e ouvinte incansável. Como sabemos, Holmes não existiria sem Watson: o herói duplicado consolida o gênero, um é o complemento do outro, um modelo que seria imitado à exaustão com o advento da cultura de massa.
Não é só pela atmosfera gótica que aprecio as histórias de Holmes. As nuances, as reviravoltas, as possibilidades lógicas – tudo isto conduz à captura do criminoso, não sem antes de deduções, planejamentos e teorias, os quais preenchem uma falha ou acrescentam um pormenor que escapou ao pobre inspetor Lestrade.
Ao longo desses contos, encontro às vezes Holmes fumando o seu cachimbo, sentado na sua poltrona, ensimesmado… A droga, como meio de ampliar a sua razão, confortava-o e, ao mesmo tempo, levava-o a elucubrações porfiosas. Uma mente fora de série.
Por mais que possa sugerir o seu criador, Holmes nunca foi depressivo. Ao contrário, a paciência e a cautela caracterizavam as suas ações; ao lado disso, era criativo, estratégico, prevenido, com um passo sempre à frente do contendor.
Quando estava macambúzio e pensativo, nos momentos em que um caso relevante fustigava a sua concentração, o que preocupava Watson, reagia de modo repentino, como se lhe ocorresse uma ideia brilhante e, num salto, arrastava o seu fiel companheiro à aventura.
Entre tantos investigadores da literatura policial, Holmes é um querido amigo, com quem, nas minhas noites de imaginação solitária, segura a minha mão e me conduz por uma Londres cujo fog dilui as paisagens e me ensina, ao longo dos postes de luz a gás e das ruas sombrias, como devem ser narradas as histórias de detetive.