A descoberta do Novo Mundo, entre o final do século 15 e início do 16, não teve impacto apenas sobre a ordem política e econômica dos países europeus, oferecendo a eles uma inesgotável fonte de riquezas naturais e um imenso território a ser colonizado. Do ponto de vista cultural, a notícia que havia um imenso continente do outro lado do Oceano Atlântico, habitado por variadas aglomerações de povos com costumes e práticas tão estranhos quanto diversos entre si, causou, na mentalidade europeia, reações que iam do assombro e do maravilhamento à repulsa e à rejeição. Laplatine resume bem essas diferentes atitudes em dois tipos: de um lado, um fascínio pelo estranho e, de outro, a recusa do estranho.
Aqueles que adotaram a última atitude proclamavam como bárbaras e vis essas culturas tão diferentes da europeia, e houve quem chegasse a negar que os povos indígenas habitantes do Novo Mundo fossem humanos e tivessem alma. Já os que se deixaram tomar pelo fascínio diante daquele mundo desconhecido, pelo contrário, foram tomados pela sede de não só conhecer mais sobre esses povos, mas também aprender com eles e, a partir desse aprendizado, passar a refletir sobre a ordem política, cultural e social da Europa, considerada o ápice da civilização, e a questionar os seus usos e costumes. Dentre os intelectuais europeus que se encaixam neste segundo movimento, situa-se o francês Michel de Montaigne (1533-1592).
Como afirma Frank Lestringant no artigo O Brasil de Montagne (2006), no retiro em seu castelo onde passou longas temporadas, Montagne afastou-se do esplendor da corte em Paris, mas esse isolamento não significou uma desconexão com o mundo de sua época. Na famosa biblioteca em que passava longas horas lendo e compondo seus Ensaios, o autor manteve-se a par das descobertas no Novo Mundo e dos hábitos tão estranhos quanto fascinantes de seus habitantes, por meio dos relatos de viajantes como André Thevet e Jean de Léry e dos cronistas espanhóis Francisco Lopez de Gomara, Gonzalo Fernandes de Oviedo e de Bartolomé de las Casas, esse último um feroz denunciador das atrocidades cometidas pelos espanhóis contra os indígenas da América Latina.
Montagne tinha ainda o privilégio de contar com o convívio de uma testemunha ocular das maravilhas do novo continente: um criado seu que havia vivido entre os tupinambás na breve experiência da França Antártica na Baía da Guanabara, levada a cabo por Villegagnon. Apesar de ser qualificado pelo pensador como um “homem simples e grosseiro”, o serviçal lhe narrou com riqueza de detalhes sua experiência no Brasil.
Dessas leituras e desse testemunho, além de outros que recolheu, Montagne procura analisar com um olhar despido de preconceitos essas novas culturas e usá-las como ponto de partida para refletir sobre os valores do seu próprio mundo. No famoso capítulo “Os canibais” do primeiro volume dos Ensaios, discorrendo sobre as práticas dos tupinambás, ele afirma não ter visto nada de “bárbaro e selvagem” nessa nação, proferindo em seguida o que se tornou uma espécie de slogan do relativismo: “cada qual chama de barbárie aquilo que não é de seu costume”.
Os povos tubinambás, na visão de Montagne, eram extremamente valentes e corajosos. Eles se batiam em combate movidos não pela cobiça, como os europeus, no afã de conquistar novas terras, mas por “zelo pela virtude”. É como se aqueles povos indígenas descendessem dos nobres guerreiros de Esparta, portando as virtudes da bravura e da coragem tão enaltecidas naquela nação guerreira grega e que tinham se evanescido quase completamente com a corrupção das cortes europeias.
Montagne comenta ainda sobre as práticas canibais dos tupinambás, que tanto horror causaram às sensibilidades dos seus conterrâneos europeus à época. Mas quem é mais bárbaro?, pergunta-se o autor. Os índios que aprisionam os seus inimigos e os devoram (não porque a carne humana fazia parte da dieta desses povos, mas porque esse ritual antropofágico era uma coroação da vitória)? Ou as nações europeias, como a França, com suas guerras intestinas (a exemplo da sangrenta disputa entre católicos e protestantes que dilacerou o país e que teve no massacre brutal da Noite de São Bartolomeu[1], em 1572, o seu cume), marcadas por uma violência sem limites, da qual nem a população civil estava a salvo?
“Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo do que em comê-lo morto, em dilacerar por tormentos e por torturas um corpo ainda cheio de sensibilidade, assá-lo aos poucos, fazê-lo ser mordido e rasgado por cães e por porcos (como não apenas lemos mas vimos de recente memória, não entre inimigos antigos mas entre vizinhos e concidadãos, e, o que é pior, sob pretexto de piedade e de religião), do que assá-lo e comê-lo depois que ele morreu” – escreve ele nos Ensaios.
Ainda no referido capítulo, Montagne louva a vida simples e os hábitos saudáveis dos tupinambás, com uma dieta à base de peixes, animais de caça e frutos, responsáveis, segundo o autor, pela boa saúde desses povos, dentre os quais, garante ele, “asseguraram-me não terem visto um único trêmulo, remelento, desdentado, nem encurvado pela velhice”. Também sobram elogios para a forma como a família tupinambá se organizava, em que todos se consideravam irmãos se fossem da mesma idade e filhos caso fossem mais novos, e a ausência da propriedade privada, já que as posses eram comuns a todos. Todas essas características são contrastadas à imensa desigualdade que se via na Europa, onde as cortes dos reis desfrutavam de todo o esplendor do luxo, enquanto multidões passavam fome.
Ao confrontrar os costumes dos índios tupinambás e os da Europa, Montagne não só questiona a ideia de barbárie, como também inaugura uma via de pensamento que consiste em aceitar a alteridade, num esforço em que o Outro não é mais o estranho e o monstruoso, mas uma espécie de espelho que reflete as nossas próprias contradições e que nos permite questionar nossas noções de justiça, honra, coragem, amizade, amor. Conforme Cláudia Vasconcellos, em prefácio a uma edição brasileira dos Ensaios, os escritos de Montagne são o retrato “do exercício constante de um juízo confrontado incessantemente com a diversidade e a mutação”. Adone Agnolin afirma, por sua vez, que Montagne inaugura a possibilidade de um “pensamento selvagem”, no sentido de que transforma o filósofo em selvagem e o selvagem em filósofo, ao experimentar a diversidade “sem se afastar da própria razão”. Ou seja, trata-se de pensar que a racionalidade ocidental não é única nem o único sinônimo de razão e que podemos sim aprender, e muito, ao nos abrir para os outros e para as outras culturas.
Séculos depois de Montagne, Claude Lévi-Strauss, no seu livro Tristes Trópicos, também questiona a ideia de barbárie. Discorrendo a respeito da antropofagia, Claude Lévi-Strauss explica que, para as sociedades que a praticavam, matar e comer o inimigo era uma forma de se apropriar de sua força, neutralizando-a ou mesmo se beneficiando dela. Comparando esse costume com o nosso sistema jurídico, que consiste em colocar em prisões aqueles indivíduos que representam uma ameaça à ordem social, Lévi-Strauss observa que, enquanto esses povos antropófagos ingeriam o inimigo, nós praticamos o que se poderia chamar de antropemia (do grego émein, vomitar), ou seja, expulsamos para fora da sociedade os elementos que a perturbam.
Concluindo seu raciocínio, o antropólogo diz que “na maioria das sociedades que chamamos de primitivas, esse costume (a prisão) inspiraria um horror profundo; ele nos marcaria, aos olhos delas, com a mesma barbárie que estaríamos tentados a imputar-lhes”. Em outras palavras, aquilo que, visto do lado de fora de uma sociedade, pode parecer bárbaro (a antropofagia para os que encerram os inimigos na prisão; a prisão para os que têm o hábito de simplesmente devorá-los), do lado de dentro, surge como uma prática humana e civilizada (combater o inimigo, em ambos os casos).
Em um artigo publicado já há alguns anos, numa coletânea chamada Civilização e barbárie, o professor Francis Wolff, da Universidade de Paris e que lecionou na USP, cita essa passagem do clássico de Lévi-Strauss para discutir a espinhosa questão do relativismo cultural. A concordar com Lévi-Strauss, observa, não existe o que chamamos de barbárie, contraposta a uma civilização. Toda cultura tem sua estrutura interna, cujos elementos devem se relacionar entre si para ser compreendidos. Todas as culturas são expressões possíveis do ser humano.
Para além dos seus aspectos epistemológicos e metodológicos, o relativismo cultural defendido por Lévi-Strauss também exibia motivações ético-políticas: tratava-se de desmascarar o discurso colonialista, com sua missão “civilizatória”. Mas essa postura não deixa de se enredar em dificuldades, como aponta Francis Wolff: ela não só nega a existência de valores universais (como a humanidade), ao fixar todo indivíduo em uma cultura específica, como acaba resvalando num relativismo moral, que fecha os olhos para a prática de barbaridades justificadas em nome da cultura.
Mas a alternativa ao relativismo não seria o etnocentrismo, a admissão de que há culturas superiores e inferiores e a aceitação da dominação de umas sobre as outras? Para sair dessa encruzilhada, Wolff propõe pensar os termos civilização e barbárie sob novas chaves. Civilização não seria sinônimo de uma cultura específica, mas a coexistência de várias culturas, em sua diversidade. Barbárie, em contrapartida, é a negação dessa possibilidade, a recusa em enxergar a humanidade na sua pluralidade. Bárbaro é aquele que nega a humanidade nos outros e só a vê em si mesmo. E é essa barbárie que devemos combater, em todo tempo e em todo lugar.
[1] A Noite de São Bartolomeu, ocorrida entre 23 e 24 de agosto de 1572, foi uma violenta repressão aos protestantes ordenada pelos reis católicos Carlos IX e sua mãe, Catarina de Médici, nas ruas de Paris, em que foram mortas milhares de pessoas. Como Montagne começa a escrever os Ensaios entre 1572 e 1573, não é duvidoso que tenha se referido a esse episódio sangrento e vergonhoso na história da França na citação que se segue (ver a cronologia da redação do Ensaios em Montagne, 2000, p. LXXXIII- LXXXIV).