[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Eclipse
Olho no espelho
E não me vejo
Não sou eu
Quem lá está
Senhores
Onde estão os meus tambores
Onde estão meus orixás
Onde Olorum
Onde o meu modo de viver
Onde as minhas asas negras e belas
Com que costumava voar
Olho no espelho
E não me vejo
Não sou eu
Quem lá está
Senhores
Quero de volta
Os meus tambores
Quero de volta
Os meus orixás
Quero de volta
Meu Pai Olorum
Em seu esplendor sem par
Quero de volta
O meu modo de viver
Quero de volta
As minhas asas negras e belas
Com que costumava voar
Olho no espelho
E não me vejo
Não sou eu
Quem lá está
Séculos de destruição
Sobre os ombros cansados
Estou eu a carregar
Confuso sem norte sem rumo
Perdido de mim mesmo
Aqui neste lado do mar
Um dia no entanto senhores
Eu hei de me reencontrar
⁕ ⁕ ⁕
[2]
Protesto
Mesmo que voltem as costas
Às minhas palavras de fogo
Não pararei de gritar
Não pararei
Não pararei de gritar
Senhores
Eu fui enviado ao mundo
Para protestar
Mentiras ouropéis nada
Nada me fará calar
Senhores
Atrás do muro da noite
Sem que ninguém o perceba
Muitos dos meus ancestrais
Já mortos há muito tempo
Reúnem-se em minha casa
E nos pomos a conversar
Sobre coisas amargas
Sobre grilhões e correntes
Que no passado eram visíveis
Sobre grilhões e correntes
Que no presente são invisíveis
Invisíveis mas existentes
Nos braços no pensamento
Nos passos nos sonhos na vida
De cada um dos que vivem
Juntos comigo enjeitados da pátria
Senhores
O sangue dos meus avós
Que corre nas minhas veias
São gritos de rebeldia
Um dia talvez alguém perguntará
Comovido ante meu sofrimento
Quem é que está gritando
Quem é que lamenta assim
Quem é
E eu responderei
Sou seu irmão
Irmão tu me desconheces
Sou eu aquele que se tornara
Vítima dos homens
Sou eu aquele que sendo homem
Foi vendido pelos homens
Em leilões em praça pública
Que foi vendido ou trocado
Como instrumento qualquer
Sou eu aquele que plantara
Os canaviais e cafezais
E os regou com suor e sangue
Aquele que sustentou
Sobre os ombros negros e fortes
O progresso do país
O que sofrera mil torturas
O que chorara inutilmente
O que dera tudo o que tinha
E hoje em dia não tem nada
Mas hoje grito não é
Pelo que já se passou
Que se passou é passado
Meu coração já perdoou
Hoje grito meu irmão
É porque depois de tudo
A justiça não chegou
Sou eu quem grita sou eu
O enganado no passado
Preterido no presente
Sou eu quem grita sou eu
Sou eu meu irmão aquele
Que viveu na prisão
Que trabalhou na prisão
Que sofreu na prisão
Para que fosse construído
O alicerce da nação
O alicerce da nação
Tem as pedras dos meus braços
Tem a cal das minhas lágrimas
Por isso a nação é triste
É muito grande mas triste
E entre tanta gente triste
Irmão sou eu o mais triste
A minha história é contada
Com tintas de amargura
Um dia sob ovações e rosas de alegria
Jogaram-me de repente
Da prisão em que me achava
Para uma prisão mais ampla
Foi um cavalo de Troia
A liberdade que me deram
Havia serpentes futuras
Sob o manto do entusiasmo
Um dia jogaram-me de repente
Como bagaços de cana
Como palhas de café
Como coisa imprestável
Que não servia mais pra nada
Um dia jogaram-me de repente
Nas sarjetas da rua do desamparo
Sob ovações e rosas de alegria
Sempre sonhara com a liberdade
Mas a liberdade que me deram
Foi mais ilusão que liberdade
Irmão sou eu quem grita
Eu tenho fortes razões
Irmão sou eu quem grita
Tenho mais necessidade
De gritar que de respirar
Mas irmão fica sabendo
Piedade não é o que eu quero
Piedade não me interessa
Os fracos pedem piedade
Eu quero coisa melhor
Eu não quero mais viver
No porão da sociedade
Não quero ser marginal
Quero entrar em toda parte
Quero ser bem recebido
Basta de humilhações
Minh’alma já está cansada
Eu quero o sol que é de todos
Quero a vida que é de todos
Ou alcanço tudo o que eu quero
Ou gritarei a noite inteira
Como gritam os vulcões
Como gritam os vendavais
Como grita o mar
E nem a morte terá força
Para me fazer calar
Protesto (1982)
⁕ ⁕ ⁕
[3]
Prece
Castro Alves que estais no céu
santificado também seja o vosso nome
Olhai por nós agora e sempre do além
Estendei as mãos sobre a cidade
Acendei a chama da liberdade
do amor da fraternidade
como vossos versos ensinado têm
Rumo às alturas às estrelas
guiai nossos passos Castro Alves
agora e sempre por todo sempre
Amém
⁕ ⁕ ⁕
[4]
Rotina
Vai um homem negro sozinho
na noite caminhando devagar
Devagar caminhando na noite
sozinho um homem negro vai
Cuidado irmão o perigo
traspassa a noite como punhal
Irmão cuidado eis que na esquina
na noite deserta surgem quatro policiais
É tarde é muito tarde a noite
se fecha com mãos de ferro é tarde demais
A noite se fecha cercando o homem negro
se fecha com mãos de ferro como tenaz
Com as mãos vermelhas eis que apressados
desaparecem na noite os policiais
Olhos apagados imóvel no chão pedra fria
em poça vermelha meu irmão jaz
E não vai mais abrir os olhos nem levantar-se
nem caminhar de noite nem dia nunca mais
Quilombo (2000)
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[5]
Encontro
De repente a noite em horas mortas
Abre a porta do meu quarto
E entra silenciosamente
Em passos suaves de sombra
Despe do corpo de veludo o tênue véu
E nua deita-se em minha cama macia e quente
Bailam no ar risos arrulhos e acres odores
De repente o quarto faz-se céu
Engalana-se de estrelas esplendentes
Astros inspiradores de quem ama
Tambores da noite (2009)
Perfil
Carlos de Assumpção nasceu em Tietê-SP no dia 23 de maio de 1927 e vive atualmente em Franca, para onde transferiu residência em 1969. Foi educado em uma família que tinha a militância política como virtude. Nessa cidade, após os 40 anos, formou-se em Letras e Direito, graduações estas que possibilitaram a sua atuação no magistério e na advocacia. Como poeta tornou-se conhecido com a divulgação de seu poema “Protesto”, sendo homenageado em diversas ocasiões. Publicou cinco livros, que se tornaram edições raras: Protesto (1982), Quilombo (2000), Tambores da noite (2009), Protesto e outros poemas (2015) e Poemas escolhidos (2017). Ao lado desses títulos, pode ser incluído agora Não pararei de gritar (Companhia das Letras, 2020). Com organização e posfácio de Alberto Pucheu, o livro reúne todos os seus poemas e inclui inéditos. A certa altura do seu ensaio, Pucheu faz as seguintes considerações: “Ao sinalizar uma de nossas falas fundadoras e revelar a exclusão como estratégia de domínio colonizador – com consequências drásticas em nosso tempo –, a poesia de Carlos de Assumpção se apresenta como uma fundação tardia do Brasil. Ela é uma aposta ética e política num outro passado e num outro presente, no qual os negros finalmente teriam visibilidade afirmativa. Atrever-se a falar, a pensar e a criar como faz este poeta é reverter a história escravocrata na qual, como um modo extremamente eficaz de dominação colonial, o silêncio dos oprimidos foi naturalizado e a manifestação dos negros impedida por meio da violência tanto física como simbólica. É aqui que Carlos de Assumpção assume como poucos o papel de ocupação do discurso, expondo os conflitos paradoxais formadores dos negros no Brasil, com o objetivo de participar da luta por um futuro mais justo.” A respeito de aspectos formais de sua linguagem poética, chama “a atenção ainda para os poemas com ressonâncias temáticas e sonoras afro-brasileiras e para os poemas seriais, com tambores, berimbaus, batuques. Em assonâncias, aliterações, repetições e síncopes, com modulações de timbres e tonalidades orais, ecoando no português efeitos linguístico-musicais populares e africanos, eles ritmam o grito dos que estão ‘cansados de tanta dor’”.
Grande contribuição Carlos Assunção deixa para a sociedade.
Amei esse autor!são belas reflexões através dos poemas
Belas reflexões através dos poemas
Fico a me perguntar quais motivos levam à falta de ampla divulgação nacional a respeito da vida e obra desse poeta!!! Uma maturidade intelectual ímpar, mesclada com fortes sentimentos de irresignacão, dor, sofrimento, herança da ancestralidade vivida, experimentada, absorvida! Vida longa a Carlos Assunção!!!