Em Um Teto Todo Seu (1928), Virgínia Woolf busca responder à pergunta em torno da ausência de uma tradição literária de autoria feminina. A imagem que desenha essa ausência, para ela, é a de um gato originário da ilha de Man no Reino Unido. O gato, um animal familiar, que, em uma situação geográfica e natural particular, desenvolveu-se sem rabo. Um animal conhecido, que existe, mas que incomoda. Assim seria a mulher escritora, no caso das reflexões de V. Woolf, escritoras de ficção. É famosa a resposta que a autora deixa indicada para a ausência de uma tradição literária de autoria feminina: as mulheres estiveram sempre enredadas pelos afazeres domésticos, ao ponto de desenvolverem suas atividades de leitura e de escrita em meio a outras atividades exigidas pela casa e pela educação dos filhos, e em permanente relação de dependência financeira de seus maridos ou pais. O que seria preciso para que as mulheres constituíssem uma efetiva linhagem de escrita? Um teto todo seu e renda independente – a solidão necessária e autossuficiente.
Procurando responder à mesma interrogação, Michelle Perrot escreveu Minha História das Mulheres (2006), em que, ao tratar da relação entre mulheres e criação, recorda um senso comum intelectual típico: as mulheres não são capazes de criar. São capazes apenas de reproduzir, dizia Auguste Comte no fim do XIX. Para Freud, a grande contribuição das mulheres para as artes seria a tecelagem. Reconhecia-se para a mulher outras qualidades artísticas – intuição, sensibilidade, paciência – menos a criação. No entanto, elas escreveram.
Há romances modelares de autoria feminina: A Princesa de Cléves, escrito por Madame de Lafayette no século XVII forjou a linguagem do coração para homens e mulheres; Os Mistérios de Udolpho, de Ann Radcliffe, abriu as portas para o desenvolvimento da literatura gótica no XVIII; Jane Austen, no XIX, inventou um jeito de não dizer dizendo – seus romances são admirados pela ironia; e a própria V. Woolf contribuiu enormemente para a vertigem formal do romance moderno. Se essa autora identificava os impedimentos materiais para o desenvolvimento da escrita entre as mulheres, Michelle Perrot demonstra as dificuldades posteriores: publicar era difícil (vale lembrar o exemplo de George Sand, que escolheu um pseudônimo masculino para isso); ser reconhecida outro desafio. Assim, pode-se imaginar como esse cânone de autoria feminina que acabamos de esboçar esconde muitos obstáculos.
Sobre publicação e recepção crítica de autoria feminina, a revista Cult, em 2018 [1], trouxe os resultados da pesquisa The Transformation of Gender in English-Language Fiction, que analisou 104 mil títulos de língua inglesa publicados entre 1780 e 2007 com base no banco de dados das bibliotecas digitais HathiTrust e Chicago Text Lab. O objetivo primeiro da reportagem era assinalar que os pesquisadores das universidades de Illinois e Berkeley, nos Estados Unidos, identificaram, com os dados fornecidos por esses acervos digitais, uma queda relevante da publicação de autoras femininas entre 1850 e 1950. Do que se destaca no título da matéria que a ficção vitoriana teria mais autoras mulheres do que a produção moderna. Chama atenção também, na avaliação dos dados, a fala da escritora Kate Mosse, criadora do Women’s Prize for Fiction, para quem a crítica literária seria uma atividade masculina e que, assim, a recepção e a consagração de obras escritas por mulheres terminaram subestimadas. Por fim, vale recordar que a pesquisa, feita sobre material de língua inglesa, fornece índices interessantes para pensar o problema da tradição literária de autoria feminina, bem como aponta caminhos de investigação, mas não é representativa de outros sistemas literários como o latino-americano e, mais especificamente, o brasileiro.
A situação das autoras mulheres no Brasil pode ser observada a partir da instituição dos prêmios literários: o prêmio Jabuti para romances, em 58 edições, consagrou 13 mulheres autoras; o Portugal Telecom, hoje Prêmio Oceanos, em 14 anos, foi concedido a 6 mulheres autoras em diversas categorias; o prêmio Machado de Assis, que já teve 57 edições, laureou 8 mulheres autoras pelo conjunto da obra. Com isso, independente de nacionalidade, não é difícil constatar que diversos fatores definem a constituição de uma tradição literária, seja ela de autoria feminina, homoerótica, indígena ou negra: condições materiais de produção escrita, acesso a editoras, recepção crítica e premiação.
Para afirmar a existência de uma autoria feminina, seria necessário, ainda, avaliar características imanentes ao texto: quais seriam os temas e as formas dessa autoria? Tal investigação é de responsabilidade da crítica literária. No artigo “Vozes Femininas na Novíssima Narrativa Brasileira”, a professora Regina Dalcastagné, dentre várias vertentes temáticas como o intimismo, o inusitado e o misterioso, a crônica doméstica e a autoajuda feminista, aposta no corpo como uma discussão própria da autoria feminina contemporânea, talvez o único até agora que seja capaz de responder com eficácia à pergunta: “Como ser universal sem ignorar as experiências de gênero?”. Completa essa resposta a hipótese de Renata Farias de Felipe, para quem a escrita de si, dentro do que se convencionou chamar de autoficção, seja a forma por excelência da autoria feminina, dado o investimento estético na incompletude do EU, o que construiria uma crítica ao fracasso dos processos de modernização que deixaram de lado a mulher e outras minorias, bem como seus corpos, seus desejos e seus defeitos. Essas respostas não são definitivas.
Há uma via paralela, que não deixa de ser crítica literária, mas se trata de uma singularização de sua natureza: a tradição de autores que refletem sobre como e por que escrevem, participando eles mesmos da atividade de canonização literária e de fixação de critérios para juízos de valor. Um exemplo da produtividade desse tipo de pesquisa encontra-se no livro Altas Literaturas: Escolha e Valor na Obra Crítica de Escritores Modernos (1998) em que a professora Leyla Perrone-Moisés examina a obra crítica de Ezra Pound, T. S. Eliot, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Michel Butor, Italo Calvino, Haroldo de Campos e Philippe Sollers para observar como essa crítica feita por autores de literatura consagrados “visa principalmente estabelecer critérios para nortear uma ação: sua própria escrita, presente e imediatamente futura”.
No mesmo caminho, segue o trabalho do bibliotecário e pesquisador da criação literária José Domingos de Brito cujos livros Por que Escrevo? (1999) e Como Escrevo? (2007) reúnem depoimentos extraídos de obras literárias ou de entrevistas de vários autores nacionais e estrangeiros que nem sempre são respostas exatas à pergunta “Por que escrevo?”, mas trechos colhidos de fontes ficcionais ou não ficcionais que ajudam a deslindar os problemas da criação e da autoria. Essas coletâneas pertencem à tradição inaugurada por Henry James com seu A Arte da Ficção, tradição essa consolidada por muitos outros autores que não estão contemplados na pesquisa de Leyla Perrone-Moisés, tais como Milan Kundera, Thomas Mann, Clarice Lispector etc., em que os autores, ao fixarem critérios para sua própria escrita, refletem sobre “o que é escrever”.
A autoria feminina não deve estar definida segundo uma essência ou uma biologia, mas que se constitui no impulso para a própria escrita, que, segundo Norma Telles (1992), lança-se para fora de si via linguagem literária. Esse lançar-se é que permitiria romper os confinamentos de criação de modo histórico, social e culturalmente impostos à autoria feminina.
[1] Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/mulheres-literatura-vitoriana-e-moderna/> . Acesso em: 08 abr 2018.
Assista no canal Ermira Cultura do Youtube ao programa Mulherzinhas, sobre escrita feminina, com Tarsilla Couto de Brito e Rosângela Chaves.