Com a colaboração de Weiny César Freitas Pinto, professor do curso de Filosofia da UFMS
A noção de “epistemologia da psicanálise” foi central para a constituição daquilo que tem se consolidado, especialmente desde os anos 70 no Brasil, como um novo campo da pesquisa filosófica contemporânea, a chamada Filosofia da Psicanálise. O filósofo brasileiro Luiz Roberto Monzani (1946) contribuiu decisivamente para o estabelecimento e a compreensão, em alguma medida muito particular entre nós, do que essa noção significa. Com enfeito, o que é epistemologia? O que exatamente é uma filosofia da psicanálise? Que tipo de interação epistemológica está em jogo aí?
Etimologicamente, “epistemologia” é a junção de “episteme” (ciência/conhecimento) e “logos” (discurso/estudo), ou seja, é o estudo da ciência, do conhecimento racional; em outras palavras, é o estudo dos princípios, normas, linguagens, hipóteses e resultados das ciências. Podemos, em sentido geral, considerar que a principal tarefa da epistemologia consiste na possibilidade do estudo racional do conhecimento científico a partir da análise lógico-histórica do que determinada ciência entende por verdade e o que apresenta como proposições verdadeiras. Logo, num sentido bastante generalizado, “epistemologia” pode ser compreendida como o estudo do conhecimento.
Já o termo “filosofia da psicanálise”, tal como os termos “filosofia da matemática”, “filosofia da física”, por exemplo, designa uma disciplina autônoma, cuja tarefa, entre outras, consiste na busca por identificar o modo próprio como a ciência freudiana estabelece suas teses, sua linguagem, seus paradigmas.
Em seu artigo O que é filosofia da psicanálise, publicado em 2008, na Revista Philósophos (UFG), Monzani procura esclarecer o sentido da “filosofia da psicanálise”, apresentando as diferenças desta em relação à filosofia da ciência, com seus clássicos critérios de verdade aplicados arbitrariamente a disciplinas já constituídas. O filósofo considera tais critérios limitados, especialmente porque as ciências possuem diferentes estágios de maturidade para que sejam medidas pelos mesmos parâmetros. A psicanálise, por exemplo, uma jovem disciplina, em alguns aspectos ainda em pleno desenvolvimento, não pode ser submetida à aplicação dos critérios de validade do modelo tradicional da filosofia da ciência. Segundo Monzani, se faz necessário outro tipo de abordagem, que considere novos métodos de validação e que não se utilize de regras predeterminadas para verificar sua coerência e validade.
O filósofo propõe três tipos de abordagens para a constituição da Filosofia da Psicanálise: o primeiro seria o traçado de uma genealogia conceitual, que estaria vinculado à história das ciências ou dos saberes; o segundo seria o de uma leitura interna da obra de Freud, que estaria ligado à análise de procedimentos e encadeamentos discursivos; já o terceiro, considerado por ele o mais interessante e fecundo, estaria ligado ao segundo tipo de abordagem, porém, tratar-se-ia de uma forma de trabalho que parte da ideia que cada disciplina produz um determinado tipo de saber, tendo contornos e especificidades próprias. Nesse caso, seria realizada uma rigorosa leitura da obra freudiana, considerando o encadeamento de suas teses, postulados etc. Essa abordagem, segundo Monzani, seria capaz de desvelar o método próprio do saber psicanalítico e demarcar critérios adequados para a validação da ideia de verdade em psicanálise, visão que difere do procedimento tradicional da filosofia da ciência, que parte de uma predeterminada ideia de verdade. É exatamente a esse formato de trabalho que Monzani chamou de “epistemologia da psicanálise”.
Este ponto deve ser considerado de suma importância, o conceito de epistemologia apresentado por Monzani é bem mais abrangente do que o tradicional. A proposta de busca da compreensão da teoria psicanalítica a partir de uma leitura interna da obra de Freud, permitindo a ela, a obra, desvelar seu próprio método de produção de saber e demarcar seus próprios critérios de validação, livres de ideias preconcebidas de verdade, constitui um avanço significativo do modelo de reflexão epistemológica que é tradicionalmente praticado pela filosofia da ciência[1].
Com efeito, para Monzani, a psicanálise produz um saber próprio e tem um modo muito particular de colocar em movimento seus conceitos. Sua ideia de “epistemologia” requer uma investigação não dogmática, que não tenha como ponto de partida a premissa de uma predeterminada ideia de verdade. Fica claro que a psicanálise se difere das demais ciências ou saberes tradicionais, na medida em que não se adéqua ao modelo clássico de validação de seus critérios de funcionamento e validade. Resta saber então quais os seus critérios próprios de verificação, movimento e produção de conhecimento. A rigor, não se trata de questionar a teoria psicanalítica ou interrogar se a psicanálise é ou não uma ciência, trata-se, antes, de identificar o movimento e o saber que ela promove.
Entretanto, sabemos que grande parte do método utilizado para a reflexão epistemológica ao longo do século XX teve suas bases no modelo da filosofia da ciência estabelecido pelo positivismo lógico, que determinava quais saberes tinham ou não efetiva possibilidade de se enquadrarem no modelo epistêmico concebido e aceito pela ciência. A psicanálise, ignorando esse consagrado modelo, surge praticamente na mesma época e se consolida como:
1) (…) um procedimento para a investigação de processos psíquicos que de outro modo são dificilmente acessíveis; 2) de um método de tratamento de distúrbios neuróticos, baseado nessa investigação; 3) (…) uma série de conhecimentos psicológicos adquiridos dessa forma, que gradualmente passam a constituir uma nova disciplina científica. (FREUD, 2011, p. 245).
Com potencial para propor novas reflexões sobre o funcionamento do pensamento, além da possibilidade de apresentar uma teoria cultural que engloba saúde, religião, laços sociais e questões que perpassam o ser humano como um todo. A abrangência da psicanálise evidenciou também a necessidade de se buscar uma abertura na reflexão epistemológica, que permitisse uma melhor compreensão do seu método próprio, bem como buscar definir novos critérios para a validação da produção de conhecimento.
Assim, podemos dizer que o formato de trabalho adotado por Monzani sobre a obra de Freud, trabalho chamado por ele, como vimos, de “epistemologia da psicanálise”, representa igualmente um novo modelo de epistemologia contemporânea, um modelo que se diferencia da clássica filosofia da ciência.
A abordagem proposta por Monzani permite revisitar a obra freudiana buscando não apenas a compreensão de sua lógica interna ou a melhor compreensão de suas articulações teóricas, mas também considera a possibilidade de promover aberturas conceituais no campo da filosofia que permitem uma reflexão epistemológica mais abrangente do que as usualmente praticadas. Se a visão da investigação epistemológica se apresentava em geral como um programa reducionista e arbitrário, a partir desse novo modelo de reflexão epistêmica temos um programa epistemologicamente mais amplo, diverso e fecundo.
Esse “novo modelo de epistemologia contemporânea”, embora investigue, considere e valorize todo o passado das ciências, possui os pés firmes no presente e observação atenta às possíveis tendências e interações futuras. Opera aberturas conceituais, sendo capaz de refletir sobre problemas filosóficos que se apresentam no curso da investigação científica, que se apresentam nos métodos e teorias, oportunizando o desenvolvimento de soluções mais efetivas para problemas enfrentados pelas ciências e saberes. Essa nova visão epistemológica poderá promover o campo da epistemologia a uma condição que lhe permitirá realizar uma reflexão mais crítica e mais profunda sobre o universo das Ciências Humanas.
Tal abertura significa tornar possível uma nova relação com outros saberes, inclusive com a filosofia. Essa nova relação de saberes pode dar-se também com abordagens antropológicas, culturais, sociológicas, psicológicas, entre outras, constituindo a busca por um saber multidisciplinar, oportunizando, portanto, uma complementaridade dos saberes e das ciências.
É claro que não é tarefa simples encontrar essa complementaridade, mas ela seria a realização de um movimento para libertar a reflexão epistemológica de alguns dogmas presentes na epistemologia tradicional (embora reconheçamos a importância deles em muitas ciências e na atividade científica em geral), a fim de redescobrir nos fundamentos epistemológicos uma perspectiva interdisciplinar, trabalhando nos pontos de contato dos saberes.
Ora, um ponto de contato é também um lugar de separação, logo, trabalhar de forma interdisciplinar consiste em conhecer as diferentes visões das abordagens disciplinares frente a um mesmo problema ou objeto. A filósofa e psicanalista Sophie de Mijolla-Mellor (1946) adotou esse formato de trabalho, que se utiliza da complementaridade dos saberes, quando criou em 1990 uma equipe interdisciplinar na Universidade Paris 7, promovendo o que ela chamava de “interações da psicanálise”.
De acordo com a pesquisadora, a introdução de outras disciplinas no tratamento psicanalítico, tais como arte, literatura, psicologia, medicina, entre outras, produzia uma fecunda perturbação no inconsciente, permitindo que se mostrassem novas e inesperadas conexões (Mijolla-Mellor, 2004). A questão, segundo ela, era identificar qual o melhor método para promover tais aproximações. Com o propósito de deixar sua proposta ainda mais clara, a filósofa retoma a significação do termo “psicanálise”, que para ela trata-se de um procedimento de investigação e um método aplicável em diversos campos.
Uma das razões pelas quais Mijolla-Mellor prefere o termo “interações da psicanálise”, em vez de algo como “multidisciplinar” ou “interdisciplinar”, é que “interação” destaca que antes da psicanálise interessar a outros campos do saber, como à filosofia ou à crítica cultural, a própria psicanálise está interessada nestes saberes, na medida em que eles são parte constitutiva dela própria e do inconsciente.
Desse modo, vemos que, seja no formato de trabalho de Monzani – “epistemologia da psicanálise” –, seja no de Mijolla-Mellor – “interações da psicanálise” –, uma clara ideia de “interação epistemológica” se faz presente, mostrando-se bastante fecunda. A adoção desses dois formatos de trabalho, que se propõem igualmente a promover “epistemologias” e “interações” entre saberes e ciências, podem ser muito produtivos na prática da pesquisa e da atividade científica, pois, por meio deles, é possível realizar trabalhos mais criativos, e assim como fizeram Monzani e Mijolla-Mellor, podemos então produzir reflexões mais críticas e profundas frente aos saberes e às ciências.
REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1920-1923). Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
MIJOLLA-MELLOR, S. A necessidade de crer. São Paulo: Unimarco, 2004.
________. La recherche en psychanalyse à l’université. Recherches en Psychanalyse, 1,27-47. (2004). Disponível em: <https://doi.org/10.3917/rep.001.0027>. Acesso em: 12 mai. 2020.
MONZANI, L. O que é Filosofia da Psicanálise? Philósophos, Goiânia, v.13, n.2,
p. 11-19, jul/dez. 2008. Disponível em: <https://revistas.ufg.br/philosophos/article/view/5735>. Acesso em:10 mai. 2020.
[1]Vale destacar: o trabalho de Monzani, pelo qual apresenta seu conceito de Epistemologia da Psicanálise, segue o modelo de reflexão epistemológica continental, especialmente o da epistemologia de origem francesa, que diferentemente do modelo anglo-saxão, valoriza muito mais os aspectos da diversidade histórica e decerto contextualismo epistêmico.