Há possibilidades variadas para as práticas de arqueologia do terreno baldio.
Para facilitar as escavações, estamos propondo uma primeira classificação, dividindo os estudos em uma arqueologia do balido pré-lar e outra do pós-lar.
Escavando fundo o terreno que precede a casa, o do pré-lar, constate-se uma somatória de usos possíveis, que irradiam relações entre corpo e espaço que negam ou subvertem a lógica do espaço como mercadoria.
A apropriação contra a propriedade.
Nesta fase introdutória da nossa pesquisa, as escavações dos sítios (l)ar-queológicos em fase de devir-casa indicam uma função deliberada de produzir intervalos no cimento, de constituir pequenos vazios de fixos, com emergência de fluxos naturais (destaque para a turma do Reino Vegetal e Fungi) e sociais (a criança que pula, o corpo do homem que dorme, a mão que colhe o arbusto que virá chá). As plantas e fungos, mas também as crianças, negam (in)conscientemente a ideia de dono: dançando no solo exposto, reivindicam a seu modo o direito à cidade.
As primeiras escavações realizadas nos sítios (l)ar-queológicos indicam que o terreno baldio em sua instância espaço-temporal pré qualquer construção constitui um alicerce na ideia e da possibilidade de cidade. Estes pequenos vazios preenchem a cidade de sentidos e sentimentos do presente. São neles que o espaço acumula tempos. O próprio imaginário do urbano não seria o mesmo sem o terreno baldio repleto pelo vazio do ainda não construído, mas preenchido por uma imensidão de usos possíveis.
A história da cidade, e do corpo na cidade, não seria a mesma sem o terreno baldio devir-casa. A história da infância no longo século 20 tem um capítulo decisivo no baldio. Usando nossos materiais de escavação, pás e pincéis sobretudo, encontramos vestígios e marcas de pião, triângulos de bolas de gude, evidências de casinhas de bonecas, fragmentos de linhas de pipa e indícios de campos de futebol. A infância fez do baldio seu avesso: preenchimentos profundos.
Os restos arqueológicos encontrados em nossas escavações nos permitem afirmar categoricamente que tais terrenos foram cruciais nas práticas lúdicas que compuseram a infância urbana até não muito tempo atrás. Por isso, não é nem arriscado nem exagerado afirmar que a rarefação dos terrenos baldios em seu estágio pré-lar estão profundamente atrelados à crise da cidade e da infância. O fim deste baldio esvazia o sentido da cidade, empobrece suas práticas, elimina o jogo e tira do corpo da criança uma profusão de possibilidades.
Em suma, as práticas de (l)ar-queologia do baldio em sua fase ainda não construída são repletas de mostras materiais de uma sociedade urbana rica de práticas lúdicas, de rebeldia das plantas que nascem sem permissão, da invenção dos usos, das simbioses entre o corpo da criança e o espaço do terreno.
As escavações indicam que aquela sociedade e aquelas cidades foram gradativamente entrando em colapso e começando a desaparecer junto com o vazio repleto de usos do baldio. O que se vê em vestígios é que, sem esse vazio do terreno para ser preenchido pelo corpo, a cidade cheia de construção foi ficando vazia de práticas lúdicas, além de perder uma vasta biodiversidade de plantas rebeldes, fungos multicoloridos, de pequenos e variados insetos.
É a propriedade contra a apropriação.
A segunda categoria dos sítios (l)ar-queológicos onde movemos nossas escavações são dos terrenos onde o construído já existiu, áreas em que a morada sucumbiu. Frações do solo urbano em que a casa virou escombro, constituindo espaços de produção da amnésia, da eliminação dos afetos que são cultivados em ambiências domésticas.
Para cada casa derrubada há o desfazimento de um conjunto de vividos que desaparecem do espaço. O ordenamento dos objetos na sala, o aconchego da luz que atravessa a cortina e avança sobre a colcha de retalhos na cama. Os aromas que brotam da panela.
Tudo some, vira sobra: sucumbe.
O que move essa destruição é a abstração quantificadora do lugar. A voracidade do mercado imobiliário que vê no espaço, no terreno, um quantum de dinheiro possível.
Nossas escavações nas áreas (l)ar-queológicas do depois-casa precisaram de ferramentas pesadas, possíveis de desobstruir pedaços de paredes, porções de cimento, ferro e madeira. A estética da destruição, a imanente paisagem de guerra. O lugar bombardeado pela aspereza do preço que precisa subir.
No centro das cidades, o centro do problema: o espaço reduzido à forma mercadoria. O valor de troca eliminando usos.
Por debaixo dos escombros, as escavações permitem localizar as divisões do que já foi lar. Os fragmentos de azulejos do banheiro que resistem na parede que sobrou convidam nossa imaginação às imagens do banhar. Não raras as vezes, junto ao azulejo, o aparador do sabonete sobrevive, dá pistas dos corpos nus que ali se lavavam.
Azulejos da cozinha também são frequentemente encontrados em meio aos escombros do terreno baldio preenchido pelo desfazimento da casa. Resistências do que já foi residência. Ver na parede o que sobrou da cozinha é um convite a imaginar a mesa, a cadeira, o fogão. As pessoas rindo juntas à mesa. O fogão produz sensações olfativas que invadem a sala, disputam a atenção com a tela da televisão.
Tudo agora é impressão em meio à escavação. A aridez da paisagem em estado de restos.
Nossas escavações começam a avançar nessas áreas-espaços-escombros. Nosso interesse é identificar restos incômodos de cômodos. Aqui onde há entulho havia um banheiro. Ali onde há cascalho era uma cozinha. A profusão de variações de azulejos, a ciência do imaginar a disposição dos móveis. Quem morava onde agora tudo é resto?
O que sobrou da cidade preenchida por desfazimentos. Eis por onde nossas escavações irão avançar, uma arqueologia do lar em estado de escombro a ser desdobrado começa aqui. Em breve traremos novas considerações destes nem sempre velhos vestígios.