Após reler Memórias Póstumas de Brás Cubas, chega à memória o 11º capítulo: “O menino é pai do homem”. Nele, Brás Cubas visita o passado declarando ter sido na infância um “menino diabo”, confessando as próprias atitudes como “argutas, indiscretas, traquinas e voluntariosas”. Impossível esquecer o revoltante episódio da quebra da colher de pau na cabeça de uma das escravas por lhe negar o capricho de degustar um pouco do doce de coco. Ademais, chama minha atenção o comportamento de outra personagem da obra, que melhor indica as pistas sobre a genealogia da crueldade nos seres humanos; tratarei, para tanto, de Prudêncio.
Prudêncio é na verdade o “moleque da casa”, provavelmente filho de alguma das escravas da propriedade. Suas aparições no transcorrer do livro ocorrem de forma modesta, limitando-se no máximo a dois ou três capítulos, porém, expressivos, caso consigamos vê-los como de inestimável contribuição, conforme dissemos, no interesse de tratarmos a formação do “homem cruel”.
Sobre si mesmo, Brás Cubas relata em um dos capítulos suas brincadeiras infantis – felizmente, nos dias de hoje, censuráveis. Dando asas à mais perversa das imaginações, pegava o pobre Prudêncio e transformava-o num cavalo, ordenando-o que dispusesse as mãos e os joelhos no chão, recebendo um cordel nos queixos, à guisa de freio na boca, para depois subir em seu dorso e chicoteá-lo enquanto “cavalgava” pelos arredores do casarão. Restava ao escravo obedecer, reclamando aos tímidos sussurros de “ai, nhonhô!”, mas imediatamente repreendido pelo senhorzinho com o enérgico “cala a boca, besta!”.
Por mais constrangedora que nos pareça a cena, reconhecemos lamentavelmente tratar-se de situações cotidianas outrora pertencentes às famílias da elite brasileira escravocrata. Assim sendo, avancemos mais alguns capítulos e chegaremos ao 98º, intitulado “O vergalho”. Passados vários anos, o protagonista, detido em seus pensamentos, de repente presencia no real um “preto a vergalhar outro preto na praça”. Incapaz de fugir, o desgraçado, sob a humilhação dos ininterruptos açoites, implorava várias vezes perdão ao seu senhor. No entanto, o inquebrantável amo, desprovido de qualquer indulgência, outra e mais outra vez o vergalhava proferindo, entre tantas ofensas, a conhecida frase “cala a boca, besta!”. Para o nosso espanto, e o de Brás Cubas, o homem do vergalho era Prudêncio, já libertado há poucos anos e naquele instante ostentava tolamente a pose de proprietário do escravo.
Numa pretensão maior de analisarmos o ocorrido, permitam-me deslocá-lo na direção do pensamento de Étienne de La Boétie, no Discurso da servidão voluntária. Na obra, o filósofo francês questiona o motivo pelo qual alguém costuma obedecer a outro homem considerado opressor. Pois bem, o que levaria Prudêncio a agir igual a Brás Cubas? La Boétie associaria, sem dificuldade, o caso ao resultado do simples hábito, pertencente à ignorância e à imoralidade, propiciando, desse modo, a disposição voluntariosa das atitudes tirânicas. Isso, portanto, nos leva a crer que, muitas vezes, quando os homens são açoitados, ao invés de repudiarem a malvadeza dos seus opressores, acabam, estranhamente, sendo contaminados com o mesmo comportamento de seus algozes, tornando-se, consequentemente, desejosos de seguirem aqueles passos na primeira oportunidade que tiverem.
O auxílio dos dois autores é ainda pertinente no propósito de também observarmos a conjuntura política e social do Brasil nos dias atuais. Ora, mas soaria absurda esta impressão, afinal, não somos mais o país escravocrata do romance de Machado de Assis e, tampouco, vivemos no regime absolutista descrito por La Boétie. Entretanto, e infelizmente, nós brasileiros somos fartos em maus exemplos quanta à opressão e ao racismo estrutural, a começar pela observação da situação dos desassistidos, que admiram alienadamente o alto padrão de consumo dos ricos, embora sejam estes em boa parte responsáveis pela concentração de riquezas, aumentando drasticamente a pobreza e os demais problemas sociais. O que dizer então de um país cujo total de negros e pardos é o maior fora do continente africano e, a despeito disso, somos alienadamente induzidos a vislumbrar o “ideal” de beleza ariana, normalmente estampada em produtos de moda disseminados pela indústria cultural? Se hoje a ideologia da classe dominante nos leva a reproduzir os valores de uma cultura euroamericanizada, não é de admirar que na época do maior escritor brasileiro muitos, apesar da afro-descendência, almejassem se tornar senhores de outros da própria cor.
A bem da verdade, há vários séculos a humilhação contra os negros é diversa, e pode ser demonstrada principalmente pelos massacres promovidos pelo Estado, e vistos, principalmente, nas comunidades pobres, desde um opressor constrangimento: o de serem falsamente considerados inferiores em aparência e inteligência. Casos recentes fortalecem esta constatação, comprovados na eventual violência policial, na intolerância às religiões de matrizes africanas e nos shoppings das grandes cidades quando seguranças de origem preta, contaminados com o que batizo de “síndrome de Prudêncio”, agridem seus iguais, ou em discursos de campanhas presidenciais, tais como a proposta medição de seres humanos por “arroubas” e a promessa, debaixo de calorosos aplausos, da desapropriação de terras indígenas e quilombolas em nome de um “progresso”. Estaríamos de fato libertos da escravidão?
Continuamos a nos perguntar, o que leva um homem a aceitar certas condições de inferioridade em relação a outro homem? Somemos a essas reflexões a visão do cientista político Norberto Bobbio, que a esse questionamento contribui dando-nos novas pistas ao explicar a existência de certos meios utilizados entre aqueles dispostos a dominarem as demais pessoas. Para tanto, Bobbio acredita serem necessários os poderes econômico, político e ideológico. O poder econômico garantiria a riqueza e o controle das forças produtivas, já o poder político garantiria o domínio das instituições, enquanto o poder ideológico asseguraria o controle social, induzindo a população, mediante instrumentos, hoje os midíaticos, a aceitar somente aquilo que a elite define como certo, justo e bom.
Assim como La Boétie, a tese de Bobbio pode ajudar a entender certas ações até mesmo anteriores à época da escravidão, pois a exploração econômica realizada contra os pobres instaurada e legitimada no monopólio do uso “legítimo” do poder político é hoje “apropriadamente justificada” pelos meios de comunicação em massa. Mecanismos excepcionais capazes de fortalecer o conformismo da pobreza, de evitar a revolta diante dos abusos das autoridades e de perpetuar a mais profunda ignorância, considerando que aqueles que desferem sobre a população preta e pobre duros açoites seriam igualmente mártires a quem devemos seguir e admirar.
Mas nem tudo está perdido! Em meio a tantas dificuldades de vivermos envoltos pela estupidez e pelo retrocesso surgem os movimentos de insubordinação, encontrados principalmente nas diferentes expressões de pensamento. Devido à falta de espaço, evitarei nomeá-las, mas é notório o crescimento do número de artistas e de intelectuais a denunciarem o racismo estrutural, contribuindo, dessa maneira, para a criação de reflexão e resistência dentro das comunidades carentes. É como vermos surgirem novos quilombos, desta vez servindo de abrigo para as várias formas de liberdade, potência e afeto. É provável que tamanha oportunidade de fortalecer a consciência negra tenha sido negada a Prudêncio, tendo em vista que, apesar da alforria ter-lhe libertado o corpo, a alma fatalmente permanecerá presa às ambições da mentalidade do senhorio escravagista.
Confira no vídeo a seguir um debate sobre literatura e consciência negra no canal Ermira Cultura, entre os jornalistas Rosângela Chaves, Rogério Borges e Gilberto G. Pereira.