Em memória de Noé Freire Sandes
A ave me olha do interior do saco de plástico, cuja transparência embaçada não esconde a sua trajetória curta: que outros olhos, mais vivos e brilhantes, sonham a manhã que nos ilumina? Os olhos, sempre os olhos, que, no caso dos galináceos, veem o milho e os insetos com outro tipo de prazer sensorial, ora estático, ora móvel. O morto está onde o colocaram. Não importa a sua posição ou o seu lugar: ele é apenas o transitivo. Eis um dia que sempre reserva algumas surpresas: o sol, um clube, uma viagem, uma visita inesperada, o passeio a uma chácara – ou uma inútil passagem pelo sábado. Lembro-me das leituras que fiz com K. Virgínia: ela lia, e eu escutava ou, ao contrário, eu lia, e ela escutava. No fim, discutíamos as anotações que cada um de nós cuidadosamente fazia. Assim, aquelas leituras, sonoridade das palavras e celebração do texto, significavam a emoção do conhecimento, a voz que cavalgava ondas, tonitruando na sala e repercutindo significados pelas paredes e cortinas. Onde está K. Virgínia? Vejo quando a ave é retirada da embalagem de plástico. Aparecem estas poucas palavras no invólucro: “Abate de frangos selecionados”. Ninguém talvez tenha aprendido tanto sobre a morte como os açougueiros. Os seus gestos são simples e calculados: a mão que levanta o machado e o faz descer rapidamente no pescoço da ave estendido sobre um cepo. O sangue escorre em abundância. Decapitada, a ave é embalada, rotulada e distribuída à venda. Eis como se chama tudo isso: avicultura, indústria de alimentação, destruição em série da fauna comestível. Perdigão ou Sadia? Tanto faz. O capitalismo voltado ao consumo é o mesmo com marcas diferentes. Ambas, com a publicidade, ganham no debater frágil de asas. Esses olhos talvez sonhem cantos na madrugada, talvez me olhem com revolta, talvez guardem, numa memória fugaz, o gesto de um machado agressivo descendo, crescendo, descendo, dilacerando. Parece que as pessoas se sentem melhor nesse dia chamado sábado: agitação acelerada do comércio, anúncios de feijoada nos restaurantes, um esvaziamento de ruas aos poucos – depois, à tarde, lentidão quase semelhante aos domingos e feriados. Desse modo, K. Virgínia olhava-me ao fim de um parágrafo: “Você está me entendendo?”, perguntava-me de trás dos seus óculos (nesse momento, ela tinha uma expressão que eu não encontrava outra igual em nenhum outro encontro). Eu sorria meio sem jeito, acenava com a cabeça, e, se K. Virgínia olhasse você também daquele jeito, ao fim de um parágrafo, talvez você sentisse a mesma coisa, isto é, se o seu sangue não fosse composto de hemácias. Por que o pássaro dodô não fugia dos seus implacáveis perseguidores? Por causa disso, para começar a pensar em respostas, a sua espécie foi extinta, desaparecendo, de uma vez por todas, da face da Terra, aquele pombo gentil e grotesco, que se entregava inocentemente aos seus caçadores. Como dói olhar o morto e senti-lo vivo circulando no meu corpo. As suas mãos – imóveis mãos gastas em carícias e bem-aventuranças – guardam a última pose. Como renúncia dos que se entregam ao sacrifício, é preciso respeitar esse gesto solene e triunfal, o do que jaz: veias em repouso, sangue coagulado, olhar de vidro, unhas petrificadas: o morto também passa. Finalmente, o frango é retirado do embrulho transparente para ser esquartejado. As mãos da cozinheira, com habilidade, começam a transformá-lo em partes desiguais. A cozinheira, como era de se esperar, conhece o seu ofício. Às vezes, K. Virgínia tinha o hábito de me beijar como irmão, ou perto disso. Ao inclinar a cabeça, o seu hálito de flores me enebriava. Ao mesmo tempo, o seu decote revelava-me uma aréola que me piorava, em sua cor rósea: os bicos intumescidos de seus seios enchiam-me de imaginação e saliva e volume. Eu a desejava nessas ocasiões mais do que em outras, quando também me abraçava e, mais que tudo, queria que ela sussurrasse: “Me ame”. Depois, dizia-me: “Eu gostaria de viver a ciência – e não a existência.” Depois, sentava-se no seu lugar e abria o livro na página marcada; depois, decidíamos quem iria ler; por fim, retirando-me do meu deslumbramento, a sua voz mostrava-se como um arco-íris, cheia de nuances e brilho: o texto, as frases, a voz como uma radiodifusão, os olhos brilhantes de K. Virgínia, essa mulher-palavra, parágrafo após parágrafo. Por causa dessa sequência de gestos e tiques, eu perdia o degrau de uma escada imaginária – e caía, bobo, nas reticências de minha fraqueza. The Oxford Universal Dictionary: dodo: an extinct bird: didus ineptus, of the order columbidae. Um dia, alguém reunirá as partes invisíveis desse pássaro afetuoso e o reintegrará à sua paisagem natural: ilhas Maurício – ou museus de história natural. A gastronomia do sábado nos alimenta, a sedução dos rótulos nos supermercados, a memória de antigas receitas, a culinária de exóticas combinações, o hábito humano de transformar os bichos (domésticos ou não) em alimento. O sábado é um frango que agora vai ao forno, após ter sido selecionado, cortado, temperado e arranjado em porções dentro da travessa. Não se chora o morto, mas a morte. O morto é esse instante de silêncio absoluto – último olhar ou ritual de despedida – dos vivos que o substituirão, um dia, nos lugares convencionados para se deplorar a morte: ou uma capela funerária, ou uma sala familiar, ou uma igreja – e sempre as mesmas flores, as mesmas velas, os mesmos paramentos, a mesma solenidade e, quem sabe?, os mesmos pêsames na hora em que uma pessoa chegar e se abraçar com uma mulher bem triste. Como um agente da morte, os açougueiros são muitas vezes um debater de asas moribundas – os açougueiros de aves querem dizer muitos frangos mortos para o consumo do sábado. K. Virgínia animava as discussões com ironia e um entusiasmo exacerbado. Às vezes, tornava-se apaixonada ou mal-humorada – mulher ambientada com a força da reflexão, animal ameaçado, como um cão defendendo o seu território. Nessas ocasiões, K. Virgínia assumia um ar teatral e sardônico. Se você a visse nesses raros momentos, talvez a admirasse porque ela tinha qualquer coisa de arrebatador – talvez a detestasse porque, em contrapartida, tinha ainda, de modo veemente, qualquer coisa de professoral e fanático. Em seguida, K. Virgínia acalmava-se e, se estava em pé, sentava-se em sua cadeira preferida e me olhava enternecida por dentro de suas lentes e dizia algo parecido com a seguinte frase: “Eu sou assim mesmo, não sei me controlar quando estou envolvida numa discussão na qual acredito no valor das minhas ideias”, ou muito perto disso, se me lembro bem, pois era sábado e havia um sol lindo lá fora. A mulher com asas. A mulher que voava a partir dos alpistes do texto. A ilustração do pássaro dodô pode ser facilmente encontrada nos livros de ornitologia ou nas enciclopédias. Mais particularmente, ele pode também ser apreciado num quadro de Henry Coëlas, acervo do Museu Nacional de História Natural, em Paris, no Jardin des Plantes. A imagem mostra três homens em torno do pássaro, entregues à tarefa de sua reconstituição, num laboratório de taxidermia. Título do quadro: “Reconstitution du dronte”. Por caprichos da natureza, coisa que não nos compete explicar, o dodô não tinha a beleza e a elegância da maioria das aves. Ao contrário, era completamente desajeitado e até assustador, e seu porte, crê-se, superava o de um peru. Ave que causava a muitos repulsa e nojo. Em 1507, quando os portugueses desembarcaram nas ilhas Maurício, encontraram ali grande número de um estranho pombo terrestre, de enorme tamanho, com aparência ridícula, incapaz de voar tanto por causa do seu peso quanto por suas pequenas asas. Essas aves eram tão imbecis que só opunham alguma resistência aos seus perseguidores no momento em que, tarde demais, tinham o pescoço torcido. Graças ao seu comportamento e aspecto, os portugueses deram-lhes o nome de “dodô”, uma palavra originária do neerlandês, que significa “estúpido”. Em 1638, quando os holandeses tomaram posse das ilhas, encontrando ali esses mesmos pássaros, atribuíram-lhes o nome de walg-vogels, que significa “aves asquerosas”. Todos esses índices depreciativos, subjacentes na classificação, condenavam, como uma distração da Natureza, o pássaro dodô a um futuro sinistro. A cozinheira abre a tampa do forno e observa o assado. Por causa das combinações com outros ingredientes, o frango agora é um nome que pertence à culinária. Nada mais do que uma unidade no conjunto da receita, ele é o prato que o descaracteriza, para sempre. Mutilado e transformado, o frango foi antes nutrido e cuidado para receber, nesse dia, a condenação imposta pelos nossos hábitos alimentares: tanto para o açougueiro como para a cozinheira, esse fato não tem a menor importância, enquanto o consumidor atira os ossos aos cães. Apenas uma cadeia alimentar, apenas o de todos os dias, esses dentes que foram feitos para triturar. Ser ave é aceitar a sua extinção? Mas os frangos repetem-se a cada ovo, o mesmo ciclo é refeito sempre, todos, finalmente, do filhote ao adulto, se parecem, e, para a espécie, essa ordem não representa nada. Tanto faz nascer frango ou galinha: o destino será o mesmo. Ou, variando as possibilidades, ser assado ou grelhado ou ensopado ou desfiado. Ser ave é morrer aos sábados e, muito mais intensamente, morrer aos domingos, com açafrão. De outra forma, é desaparecer definitivamente entre os dentes dos cães. O morto não me assusta, a morte talvez: aqui deposito o cordeiro, ó meu Pai, não queirais perder nele, pastor de almas desgarradas, o vosso estado de Graça, aquele que Vos serviu piamente. O morto envolve-me no seu mistério: eu sou este que aí está, imóvel; eu sou este, no instante em que os relógios enguiçam o seu mecanismo – e param. Eu antecipo a hora em que substituirei este que, morto, condena os vivos à mesma posição. O futuro é um delírio da ficção, em que os sonhos têm profundidade, do início ao fim, até onde a vista alcança, imaginação das formas mais insuspeitas, fruição do tempo indizível pela recusa do próprio tempo presente. O futuro é também este morto ensinando-me a minha morte. Só posso vê-la através dele, didaticamente, como no poema de Manuel Bandeira. A morte ou o morto – que diferença faz? Signo por signo, o morto não pertence a ninguém; a morte, ao contrário, pertence a todos. E cada um carrega os seus fantasmas, os seus mitos, as suas esperanças, os seus desejos, as suas marcas. E por incluir os símbolos, eis K. Virgínia, uma mulher que inventava a sua beleza. Tomando chope, indo ao cinema, fazendo compras, andando pelas ruas, em qualquer ação que fazia publicamente, mesmo nas manifestações mais furiosas de 1968, ela perdia o poder da palavra e impunha-se pelo seu corpo, as roupas de cores vivas e esvoaçantes, os cabelos desfraldados e, plena de gestos e movimentos, fazia-se mulher em todos os planos, retrato de pintor impressionista, personagem de Fellini, sensual e magnificamente perturbadora. K. Virgínia era mesmo de fechar o comércio. Era assim que vivia fora dos textos: selvagem e rebelde, livre e totalmente à vontade, com as suas amplas significações urbanas, a maior parte despercebida pelos mortais. Sobretudo nesses momentos, em que pudesse ser admirada e confundida com as gravuras perturbadoras, se você a visse então teria de reconhecer a força erótica que ela irradiava dos mais insuspeitos detalhes do seu corpo. Para um homem, não era fácil conviver com K. Virgínia, mesmo numa relação textual e discursiva. Entre o real e o imaginário, ela era sinal vermelho, passagem proibida, caminho sem saída, uma fantasia neurótica. Em 1638, um exemplar do pássaro dodô foi exposto em Londres, atraindo curiosos que, por serem parvos, certamente não saberiam diferenciar uma gralha de um corvo, enquanto em 1681, segundo os depoimentos, não foi encontrada uma só ave nas ilhas: essa misteriosa espécie tinha sido então completamente extinta. Do exemplar levado para Londres, restaram apenas os pés e a cabeça, uma vez que não se pôde mantê-lo empalhado por causa dos rudes conhecimentos que se tinha na época a respeito da arte da conservação dos animais mortos. A imagem do dodô chegou até nós por intermédio dos desenhos feitos por um artista holandês, em 1599. Mesmo representando uma presa fácil, o seu desaparecimento não pode ser atribuído a um extermínio intencional do homem: a sua carne era muito dura e apenas comestível; em último caso, somente algumas partes poderiam ser consideradas apetitosas. Apesar desse detalhe culinário, que não eleva a honra dos mais medíocres cozinheiros, ninguém jamais poderá negar a participação humana no crime de extermínio do pássaro dodô: no dia em que os colonizadores desembarcaram nas ilhas, levaram consigo grande número de porcos e ratos. Esses animais destruíram os ovos e perseguiram os filhotes, impedindo assim, por essa extravagância do instinto, a reprodução de novas aves. Excessivamente dócil, subserviente aos caprichos de estranhos predadores, o pássaro dodô não reagiu aos ataques dos invasores. Foi esse comportamento pacífico e de boa índole – o de não se opor aos opressores – que o condenou; foi enfim a sua domesticidade que o destruiu. Para o pássaro dodô, o dia era sempre o do caçador. Todos os dias, o dodô perdia. O frango nosso de cada sábado: cada rei toma as melhores partes ou, na mesa dos pobres, os perdedores sempre comerão farelos. O frango vosso de cada dia: o banquete, pronto, é uma imagem do fascículo semanal de culinária: os arranjos e enfeites mastigam os pratos, os líquidos entornam-se na toalha. O frango de todos em cada fome: comei e bebei e dançai – o circo nos alucina, a mensagem na tevê nos manda ficar quietos e sorridentes, a boca cheia nos faz esquecer de outras fomes além da mesa posta, além da nossa porta, muito além, na fronteira. O frango no prato do dia: em algum lugar, os cães sabem que os ossos são a porção que lhes cabe da nossa cristianíssima bondade. Um galo canta, sobrevivente dos açougueiros, anunciador do dia, porta-voz das manhãs. E na nossa selva quem cantará, angelo annunciatore, o dia – canto que desperta cedo os ódios urbanos? E se o pássaro dodô tivesse devorado os portugueses e os holandeses? Os porcos e os ratos? O colonialismo? O morto extingue a si mesmo dentro de um arranjo floral que ele não escolheu. Esse último adeus: palavra que encerra as suas combinações para continuar sonora na boca do filho, o qual recebeu do pai, por meio do poderio das palavras, as normas da família e de seus ancestrais: é assim que se faz um império, uma cidade, um grupo social, um clã – e continuamos resistentes e resistindo, passando de mão em mão os nossos hábitos e sinais. Depois que K. Virgínia disse tchau aos textos, é inútil esperá-la abrir a porta e vê-la entrar, numa aparição radiante, com os livros nos braços, reintegrada ao seu êxtase de viver os parágrafos. O dia, o morto, K. Virgínia, o frango, o pássaro dodô (fantasma de sua espécie): formas, nomes, lembranças, linhas gráficas; mais do que isso, uma constelação: aquela que é um símbolo das rotas, das estrelas que iluminam o texto, o encontro de coisas perdidas, a orientação obrigatória para quem defende a sua presença entre as palavras e o seu lugar, por enquanto, no meio dos vivos – aqueles que, por sorte, conseguirão sobreviver às catástrofes pessoais e coletivas, como já prenunciava o naturalista Humboldt no século XIX.