O filme A Excêntrica Família de Antônia, dirigido por Marleen Gorris, pode ser visto como uma narrativa sobre a passagem da vida humana pelo tempo. Passagem que se inicia com o nascimento e se encerra quando morremos. A vida talvez seja a experiência humana entre esses dois extremos (início e fim). Se a vida consiste nesse acontecimento, a referida película, da mesma forma, pode ser lida (porque filmes além de serem vistos também podem ser lidos) como representação da capacidade humana de reinventar-se diante do imprevisível e das adversidades, e, na mesma medida, também como um elogio aos afetos, uma celebração da vida.
Antônia retorna ao vilarejo onde nasceu e cresceu para enterrar a sua mãe. Acaba permanecendo por lá até a sua própria morte. No início dessa fase, ela é observada com curiosidade pelos moradores, todos conhecidos, e que ali constituíram suas famílias e fincaram suas raízes, enquanto Antônia passara longos anos na cidade grande. A personagem permanece no vilarejo para administrar a propriedade de sua falecida mãe e com elegância defende a emancipação feminina, não adere às convenções sociais, se revolta contra a violência sexual, luta por justiça e aos poucos vai formando uma família que eu não diria “excêntrica”, mas totalmente fora dos “padrões” tradicionais.
A configuração da família de Antônia – distante de qualquer modelo de família tradicional – é composta por membros como uma garota com danos psicológicos por ter sofrido abusos sexuais, um autista e até um ex-padre. Na família nada ortodoxa, todos trabalham na lavoura e realizam banquetes ao ar livre; nesses momentos, cultivam o bom humor, os bons afetos e o respeito às diferenças. Entretanto, encontra-se confinado, em sua casa e em meio a centenas de livros, no vilarejo, aquele que provavelmente seja o melhor amigo de Antônia, o filósofo ermitão chamado Dedo Torto. É ele quem desempenha a função de preceptor da filha de Antônia e posteriormente de sua neta e bisneta. A base de suas orientações pedagógicas e filosóficas se concentra especialmente na filosofia de Schopenhauer. A impressão que temos é que Dedo Torto encarna a filosofia de Schopenhauer como uma espécie de mapa para se guiar pelas estradas tortuosas da vida, sem nutrir grandes esperanças. Adiante, pretendo ilustrar essa minha interpretação. Convêm nesse momento versar um bocadinho sobre o pensamento de Schopenhauer, morto há exatos 160 anos.
Em 1819, foi publicado O Mundo como Vontade e Representação, obra fundamental de Schopenhauer. A obra pretende desvendar o que o filósofo denomina de “enigma do mundo” (retomarei esse ponto mais à frente) e se constitui de quatro linhas de investigação filosófica: a teoria do conhecimento, a filosofia da natureza, a estética e a ética. Em linhas gerais, a filosofia de Schopenhauer pinta um quadro farto de questões cruciais para entendermos a contemporaneidade: a sexualidade como componente delineador da vida humana (teoria que indubitavelmente repercutiu na construção da psicanálise de Freud); a posição excepcional da arte em nossas vidas (ponto que sem dúvida influenciou diversos artistas, como Machado de Assis e Thomas Mann) e a especulação teórica sobre a noção de vontade e a ideia de gênio que posteriormente exerceram papéis decisivos na edificação do pensamento de Nietzsche.
Em Schopenhauer como Educador, Nietzsche afirma que se os grandes homens – considerados filhos autênticos de seu tempo – são aqueles que experimentam os infortúnios da vida com mais profundidade e sensibilidade quando comparados a todos os homens menores. Uma luta que se imprime na realidade como uma luta sem sentido e altamente violenta contra eles mesmos, visto que aquilo que eles confrontam em seu tempo são obstáculos que insistem em atravancar o seu caminho, impedindo-os de realizarem a sua própria grandeza, a qual significa: serem livres e autênticos.
Desde o início da sua juventude, Schopenhauer lutou contra os infortúnios de seu tempo, nesse período personificados pela figura materna. Ao operar uma espécie de expurgação desses infortúnios, “purificou e curou seu ser” e fortaleceu a saúde de sua alma. Para Nietzsche, por conta disso, a filosofia schopenhaueriana pode ser reconhecida como “espelho do tempo”, mas não pelas imprecisões que o espelho teima em refletir, com ares doentios, no tempo presente, revelando “magreza e palidez, como olheiras e caras abatidas, como marcas visíveis do sofrimento” que remetem à primeira juventude. Mas, sim, pelo desejo por uma natureza resistente, assim como por uma humanidade salutar que representa o desejo por encontrarmos a nós mesmos. Ao triunfar sobre o tempo, Schopenhauer contempla a si mesmo com perplexidade no espelho: eis, o gênio.
A noção de “vontade” se inscreve como uma peça teórica imprescindível na filosofia de Schopenhauer. Sob a perspectiva do filósofo alemão, isso sugere que acima daquilo que podemos pensar de maneira efetiva existe um conteúdo mais insondável para o próprio mundo. Tal conteúdo seria evidenciado a nós não mediante aquilo que temos a capacidade de “representar” e sim à custa de experiências que vivenciamos por meio dos nossos corpos. O corpo se apresenta no pensamento de Schopenhauer como um ponto fulcral que nos possibilitaria decifrar “o enigma do mundo”. Em seu entendimento, todas as expressões materiais, vegetais, animais e humanas são compreendidas como formas de “objetivação da vontade”, a saber, expressões da essência do mundo que se coloca como uma força cega e irracional, em suma, a vontade de viver. Algo bem próximo do que Freud denominará de “pulsão de vida”.
Ao situar a noção de “vontade” no centro de sua reflexão filosófica, Schopenhauer instaura uma leitura extremamente original a respeito da condição humana. A “vontade” se postula como a nossa essência, aquilo que nos impele, nos move; somos primordialmente “vontade”. Assumindo essa posição, Schopenhauer demarca uma forte oposição aos modelos clássico e moderno que cimentaram e difundiram uma concepção do ser humano como um animal racional, autônomo, livre, dotado de capacidade de tomar decisões lavradas unicamente por sua racionalidade. Em contrapartida, Schopenhauer revela que o ser humano é vontade. Ininterruptamente somos irrigados por rios de desejos, paixões, impulsos, necessidades, afetos, sonhos, pois como somos balizados pela vontade e a vida gira em torno da complexa atuação dos desejos, e com frequência, estamos em busca de realizar aquilo que desejamos, desejando o que não temos, tentando assegurar o que conquistamos ou lastimando o que perdemos. Essa constante atuação dos desejos na existência humana tem como resultado o sofrimento – a vida é assinalada pelo sofrimento. “Viver é sofrer”, “quem deseja sofre”, escreve Schopenhauer.
Se o homem é movido pela vontade, a atuação dos desejos tem um preço a cobrar: ela conduz o ser humano inevitavelmente ao sofrimento. A filosofia de Schopenhauer apresenta algum tipo de atenuante para o sofrimento? Arrisco-me a dizer que sim, porém, antes de examinar esse possível atenuante, concedam-me resgatar brevemente a figura de Dedo Torto.
Dois momentos no filme A Excêntrica Família de Antônia talvez ilustrem a maneira como a personagem Dedo Torto personifica o pensamento de Schopenhauer. Primeiro, quando Antônia e sua neta, Thérèse, assombrada pela dúvida em dar sequência ou interromper uma gravidez indesejada, procuram Dedo Torto para saber a sua opinião sobre o dilema. Explicitamente a favor da interrupção da gravidez, Dedo Torto inicia sua argumentação defendendo que “a melhor coisa é não nascer, não ser, ser nada”. Em seguida, apresenta algumas questões para que Thérèse reflita: “o mundo é um inferno habitado por espíritos atormentados e demônios”, “não tem pena da criança?”, “Não prefere poupá-la da desgraça da vida?”, “Como pode pensar em trazer outra vida a esse mundo podre?”. Segundo, uma carta de Dedo Torto endereçada à Thérèse, que pode ser resumidamente assim: “Minha querida Thérèse, é absurdo crer que a dor constante que nos aflige seja puro acaso. Pelo contrário, a desgraça é a regra, não a exceção. A quem culpar por nossa existência? A explosão solar que nos deu a vida? Eu me acuso, já que não creio em Deus ou reencarnação. Se acreditasse, poderia me iludir de que a vida nos promete uma sobremesa divina, depois da indigesta refeição”. Não me atreverei aqui a entrar em detalhes sobre a decisão tomada por Thèrese, tampouco narrar o destino de Dedo Torto.
Retomando ao pensamento de Schopenhauer, qual seria o atenuante para a vida humana definida pela “vontade” e pelo sofrimento? Possivelmente pode-se constatar na filosofia schopenhaueriana pelo menos um meio capaz de aplacar o sofrimento humano: a compaixão. Ao decifrar o “enigma do mundo”, isto é, ao trazer à tona o pressuposto de que somos basicamente “vontade”, Schopenhauer abre um horizonte para compreendermos as dores dos nossos semelhantes e reconhecermos o quão próximo elas são das nossas próprias dores. Essa compreensão seria capaz de orientar o homem à superação do egoísmo e paulatinamente desenvolver um senso de justiça espontâneo, desempenhar gestos de bondade, alcançando consequentemente como ápice a experiência da compaixão. Esta, para Schopenhauer, deveria se situar como alicerce de toda e qualquer moralidade.
Isso não significa uma moralidade racional, embasada no dever, como vemos em Kant, mas uma moralidade baseada em um sentimento e, que, a partir da apreensão de nossa essência, ou seja, a de que fundamentalmente somos “vontade”, teremos a possibilidade de compreender as dores dos nossos semelhantes e provavelmente nos solidarizar com eles. O sentimento da compaixão (se compadecer com o sofrimento do Outro, sofrer com o Outro) abranda o sofrimento por um tempo, mas não o elimina completamente. Parece-me sensato, por isso, suspender as ilusões e considerar as palavras do narrador de A Excêntrica Família de Antônia: “o provérbio é errado. O tempo não cura tudo. O tempo não cicatriza as feridas. Ele apenas alivia a dor e embaça a memória”.