Se a literatura é uma forma de manifestação artística, o ato de ler também pode ser visto como uma “arte”. Este é o mote de um livrinho saboroso, intitulado A Arte de Ler, do ensaísta e crítico francês Émile Faguet (1847-1916), que foi muito influente no seu país e nos circuito literário europeu nas últimas décadas do século XIX e início do século XX. Para os padrões dos modernos estudos literários, algumas ideias de Faguet – que era colaborador do célebre Journal des Débats – podem parecer um tanto ultrapassadas e vários dos autores citados por ele, como Corneille e Racine, há tempos já não despertam muito interesse junto aos leitores contemporâneos. Porém, essa pequena obra escrita com elegância deve ser encarada mais como um testemunho de um amante da leitura que se propõe a compartilhar sua paixão com os outros que propriamente um manual de crítica.
Também deve ser levado em conta que a “arte de ler” a qual Faguet se refere no título do livro deve ser entendida como uma habilidade que, se bem aprimorada, nos torna uma espécie de virtuoses da leitura, como um pianista que executa magistralmente uma peça musical. Nesse sentido, essa “arte de ler” não deve, portanto, ser compreendida de um ponto de vista utilitário, visando objetivos exteriores à própria leitura. Como amante da leitura, para Faguet o ato de ler é um fim em si mesmo e, por isso, a sua aspiração é experimentar o máximo de prazer estético na companhia do amado, os livros.
Ora, prazer não combina com pressa – mesmo que nos seja servido o mais elaborado dos manjares, se o devoramos com sofreguidão, mal conseguimos sentir o seu gosto. Pois bem, eis a lição inicial de Faguet, já nas primeiras páginas do livro: o bom leitor é aquele que lê devagar, que mantém a mente sempre atenta, desconfiado do primeiro sentido que imediatamente lhe salta aos olhos.
Todavia, há livros que não suportam uma leitura lenta, contrapõe o autor, para em seguida emendar: “mas esses são livros que não é preciso ler em absoluto”. Assim, conforme Faguet, já teríamos o primeiro benefício desse esforço de ler com vagar: tal método faz a separação, desde o início, “entre o livro que se deve ler e o livro que só foi feito para não ser lido”.
Mas ler devagar, embora seja uma regra geral, não é o suficiente para desfrutar tudo o que podemos da leitura, tendo em vista que os diversos gêneros de obras requerem uma técnica especial e mesmo uma disposição de espírito diferente para cada um deles. E isso, convenhamos, é óbvio: não lemos um ensaio filosófico da mesma forma que percorremos as páginas de um romance de aventura. Para o primeiro, categoria que Faguet nomeia de “livros de ideias”, a leitura deve ser uma “arte de aproximação e comparação”. Traduzindo: para compreender um filósofo, devemos compará-lo continuamente com ele próprio, identificar suas contradições (“As contradições são os acidentes geográficos de um grande pensador. Ficaríamos desconsolados se estes não ocorressem em absoluto e se a paisagem fosse por demais bem elaborada”, diz ele). Enfim, manter uma discussão constante com o autor.
O prazer resultante é a alegria intelectual que o exercício do pensamento nos proporciona – o deleite da reflexão.
Uma segunda categoria de livros denominada por Faguet, os “livros de sentimentos”, compreendidos como as narrativas ficcionais cujo objetivo é retratar as emoções humanas, requerem outro tipo de atitude. Para melhor fruí-las, o ideal é se abandonar a elas, como se experimentássemos uma espécie de embriaguez. No entanto, poderíamos, usando o próprio método do autor, apresentar-lhe o seguinte questionamento: estar embriagado não é exatamente o contrário da postura reflexiva e alerta que o autor recomenda como essencial para extrair o máximo da leitura?
A resposta é que não devemos perder de vista que uma obra desse gênero visa sobretudo nos emocionar e, se não o faz, é porque fracassou. Pois não somos tocados por uma história se verdadeiramente não mergulhamos nela. Além do mais, esse “mergulho” não impede a reflexão – esta fica para um segundo momento quando, interrompida a leitura e de volta à superfície, passamos a pensar sobre o conteúdo do que lemos.
Esse poder inebriante que uma narrativa envolvente tem sobre nós, observa Faguet, guarda ainda um efeito suplementar. Ao mesmo tempo em que ele provoca uma espécie de fuga do eu – visto que, enredados pela trama, deixamos de ser nós mesmos para viver outros personagens, padecendo suas dores e deleitando-se com seus êxitos –, também proporciona um “alargamento” de nossa personalidade. Essa transformação ocorre, explica o crítico, por uma razão simples: quando, com os olhos grudados nas páginas de um livro que nos apaixona, experimentamos uma vida de empréstimo, fantasiosa e normalmente bem mais rica do que o nossa rotina entediante, ainda assim somos nós mesmos.
E o eu que retorna dessa viagem literária, ao fechar o exemplar que tem em mãos, volta sempre mais rico e engrandecido após essa experiência.
Também a realidade que nos cerca pode ganhar outros contornos, mais vivos e interessantes, em virtude de outra consequência benéfica da leitura de um bom romance: ele nos auxilia a captar a nossa própria vida que nos fugia, que escapava a nossas convicções irrefletidas. Por fim, à medida que nos aperfeiçoamos nessa arte da leitura, que nos tornamos também bons leitores, aprendemos ainda a decifrar melhor aquele que, segundo Faguet, costuma ser o manuscrito mais difícil e, acrescentemos, por vezes impenetrável: o nosso próprio eu.
O autor levanta ainda uma questão pertinente: os livros ruins merecem ser lidos? Sim, diz ele, mas apenas e na medida em que eles despertem em nós a necessidade de voltar às obras de verdadeiro valor. “É preciso fazer reconhecimentos na terra dos medíocres para voltar aos grandes com renovada capacidade de admiração”, sentencia.
Faguet encerra a obra comentando o ato de reler – que costuma surgir na velhice e cujas reações que provoca também são reveladoras daquilo que nos tornamos, porque nos leva a comparar com aquilo que fomos um dia. Um exercício que, por vezes, pode nos fazer chegar a conclusões desalentadoras.
Será que o fato de acharmos aborrecido um romance que lemos com entusiasmo há 20 anos – provoca o crítico – não é antes um sinal de que nós próprios é que nos tornamos uma pessoa tediosa e maçante?
O ato de ler, em resumo, é sempre uma aventura intensa – e desafiadora.