[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
o fogo nas vísceras
III
o fogo e o tédio
são produtos sem mídia,
salvo suas cores
pródigas e ingênuas
no painel de dores tíbias.
pode haver o momento
de palavras ajustáveis
em cada frase,
o momento de sombras
em transparente corpoquase
sem que isto denuncie
ruptura de gesto e culpa,
extremos de mesma base.
⁕ ⁕ ⁕
[2]
a dúbia dor
III
interno e vasto é meu grito.
até aqui trouxe dois olhos
e a visão ciclope dos pesadelos
como quem espalhou lâmina e dilúvio
para envenenar o próprio espelho
ou se ferir em gumes turvos.
viver é um risco
na ordem dos calendários:
por isso abrigo incerto mangue,
condomínio de alheios viventes,
para manter a humanidade mesma
nos outros eus mais diferentes.
⁕ ⁕ ⁕
[3]
ode analgésica
a pátria é o embaixo das roupas.
é lá que dói e se desfazem
as linhas mínimas do ventre
o lacre avesso do silêncio
e o destino de solo intêmpere.
é lá o magazine de medos
onde quem sabe há calado
na caricatura de seus becos
ou no domícilio de seus fados.
Anatomia do gesto (1989)
⁕ ⁕ ⁕
[4]
ásperas aspas
nenhuma treva me basta
se me desaba o teto a casa
meu ventre em viagem casta
e meu voo de corpo sem asa
minhas vírgulas como degraus
a entalhar ásperas aspas
o texto-hangar de minhas naus
o nu teclado de outras harpas
o império de meus ampares
nos tantos poros térmicos
os sinais que somam seres
nos andares epidérmicos
⁕ ⁕ ⁕
[5]
vaga litúrgica
o volume da chuva
é que decifra o dilúvio
como no corpo eflúvio
é âmbar a dúvida
a porta que mais vence
é a que aberta permanece
e o corpo que mais sente
é nem sempre o que adoece
Os novelos do acaso (1991)
Perfil
Pio Vargas Abadio Rodrigues nasceu em Iporá (GO) em 7 de setembro de 1964 e morreu precocemente, em consequência de uma parada cardíaca causada por overdose de cocaína, em Turvelândia (GO), no dia 8 de março de 1991. Apesar de ter tido pouca instrução formal, dedicava-se com empenho à leitura. Ocupou cargo público e integrou a diretoria da UBE, seção de Goiás. Deixou um filho, Rafael Vargas. Idealizou o projeto Edições Divagar e Sempre (conhecido como PN, sigla de Porranenhuma), produzido em xerox, que divulgava autores jovens. De recitais a concursos de poesia, incluindo festivais de música, foi também ativista cultural. Escreveu os seguintes livros de poemas: Janelas do espontâneo (1983), Anatomia do gesto (1989), prêmio da Bolsa de Publicações José Décio Filho, e Os novelos do acaso (póstumo,1991), prêmio da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos. Em 2014, a R&F Editora publicou Pio Vargas – Poesia completa, organizada por Carlos William Leite. Em prefácio ao livro, o escritor e professor Ademir Luiz considera que Pio Vargas “foi poeta de muitos temas, mas alguns ele perseguiu repetidamente ao longo de sua produção. O estranhamento ao mundo, uma visão não condescendente do amor, a boemia como resistência à mediocridade, o combate ao provincianismo, o elogio do caos, os limites do corpo e da alma e, sobretudo, a obsessão pela morte, apontada às vezes como solução.” A partir de 2021, toda a obra de Pio Vargas passará a circular nacionalmente pela martelo casa editorial, começando por Ser difícil não é fácil: antologia profética.