Eu também falo: “Filha, não é assim, não./ Este vestido está do avesso, vamos consertar, filha!/ Não, filha, desse jeito não vai dar certo!” Assim, sabe, daquele jeito meio compassivo, como a gente fala com crianças pequenas. Pior: até com filhos adultos. É, às vezes.
Pois é, e uma das causadoras de toda essa confusão hierárquica é a proteína beta amiloide, que se acumula nas células cerebrais, formando placas e prejudicando a conexão entre os neurônios. É, isso li em algum lugar, quando lia avidamente tudo o que podia a respeito do assunto. Com a pandemia, deixei disso e, outro dia, whatsappeando com minha filha e descrevendo o cotidiano (o meu, claro) de cuidadora, eu disse que até estava razoável. Ela respondeu que parecia terrível. Eu respondi, então, que era terrivelmente razoável. É desse jeito mesmo.
O estranho é que o nome não corresponde ao seu poder destrutivo. Quando leio Beta Amiloide penso numa mulher alta, magra, com cabelos pretos meio ondulados, um nariz adunco e uma voz melíflua (de onde surgiu essa palavra? Sério, quem fala assim?). Ela é descendente de americanos e os pais têm uma confeitaria no Brooklyn. A Beta? A Beta veio para o Brasil para montar uma equipe da Mary Kay e sempre se apresenta com delicadeza e sobriedade: Prazer, Beta Amiloide.
É, o termo pandemia também não corresponde aos fatos. Impossível não pensar numa grande e amigável reunião de ursos pandas, aqueles seres tão expressivos e até comovedores com sua grandeza desajeitada. Aliás, por onde andam os ursos pandas? Uma amiga diz que o mundo palpável que a gente conhecia antes não existe mais. E os ursos pandas?! A pandemia é aquilo que todo mundo já sabe ou imagina que sabe, o que nos leva, após uma avalanche de notícias assustadoras, a simplesmente: declutter.
O que é déclutter? O termo francês significa destralhar, ou seja, tirar as tranqueiras, ao organizar a casa. Embora o termo tranqueiras, quando usado por paulistanos, se refira a pessoas sem nenhum préstimo, caráter ou coragem, aqui, associado ao verbo déclutter, significa simplesmente aquele mundéu de coisas que você comprou num momento de insanidade ou de sanidade moderada, e agora atulham sua casa, juntando poeira, ocupando espaços e prejudicando o fluxo de energia.
E, para organizar, é preciso desapegar. Pois não é que agorinha mesmo eu pratiquei um ato de desapego ao me livrar de uma garrafa de vinho Surpresa Michielon, cuja tampa de plástico se recusou peremptoriamente a abrir?! Pois hoje está um dia chuvoso, e como pode um dia chuvoso sem um vinho?! O inverso até é possível, pois dá bem para tomar um vinho sem estar chovendo, mas estar em casa, numa tarde chuvosa, sem um vinho, ah, não dá mesmo. Como consequência da pandemia, não tinha mais nenhuma bebida em casa, a não ser esse vinho esquecido na geladeira. Não, não comprei, não. Trouxe da casa da minha mãe, ao confiscar um Veuve Clicquot para uma amiga comemorar a recente vida de casada. Mas o que o vinho Surpresa pretendia ser? Nunca entendi, nem mesmo degustando (?) uma uniquíssima vez. Um autêntico vinho licoroso? Uma surpresa mesmo? Surpresa! O vinho não abre! Joguei no lixo e preparei um leite com açúcar queimado e canela. Não é a mesma coisa, mas é apropriado para um tempo fresquinho, então…
Voltando ao déclutter, este conceito de organizar com desapego, jogando fora todas as tranqueiras, também pode ser aplicado em várias outras áreas do universo, como no aspecto emocional, por exemplo, consistindo em organizar-se mentalmente, livrando-se de todas as tranqueiras que te deixam pra baixo, desmotivado. Muito mais difícil, claro, do que organizar a casa, desfazendo-se das tralhas. Mas não impossível. Organizando tudinho e desfazendo-se do que não serve mais para seus propósitos e necessidades, o resultado deve ser (acredito) um espaço limpo, claro e brilhante, propício para novas ideias, livre de tralhas e confusões, pois, como afirmava a esperta Dorothy Parker, “não são as tragédias que nos matam, são as confusões”.
Esclareço que nem sempre é possível déclutter de um jeito natural e saudável, usando a meditação, por exemplo. Às vezes é preciso apelar para algo, digamos, sintético. Ontem, depois de longo tempo insistindo com minha mãe para tomar banho, após longuíssimos minutos gastos em temperar a água, minha cabeça foi tomada pelas mais variadas tranqueiras, como o impulso de sair correndo e deixar a água escorrendo ralo abaixo, enquanto ela teimava em ficar na cama, cobrindo a cabeça. Aguentei bravamente, mas, ao voltar para casa, recorri ao Quetipin 25, que minha mãe usava inicialmente, e pude dormir tranquilamente, livre de qualquer confusão ou emaranhados. Acordei só às oito hoje, depois de sonhar com a palavra OCHAIA, que sei lá o que significa, mas é linda e me deu vontade de criar uma série de objetos com esse nome, algum dia na vida.
Tudo organizado e descansado, o dia escorreu mais calmamente, toldado apenas pelo esquecimento de recolher o Black, que havia corrido para a rua, no afã de perseguir carros, procurar fraldas sujas para degustar (?) e latir com os outros cães. Absorta, só lembrei de abrir o portão quando um carro de som interrompeu a propaganda para avisar que “tem um cachorrinho preto querendo entrar em casa”. Mais que mais que depressa, corri para colocá-lo para dentro, pois Deus que me livre déclutter assim do meu companheiro de longa data! Também esqueci o cartão do banco, justamente quando saí para ir ao banco, mas não atribuo os esquecimentos ao Quetipin, mas à idade, ao cansaço e à influência onipresente e perturbadora da pandemia. Ursos pandas?! Pois sim.