A quem muito importam espelhos e labirintos, a exemplo de Jorge Luis Borges, o verso “Cred’io ch’ei credette ch’io credesse” (Inferno XIII, 25) é um deleite. Nele, o narrador Dante diz acreditar que seu guia, o poeta Virgílio, acreditava que, por sua vez, o peregrino Dante acreditasse em determinado aspecto do círculo infernal em que se encontravam.
O trecho, como quis o Commento Baroliniano, indica a opacidade do subjetivo no vislumbre do pensamento alheio. A leitura borgeana do clássico florentino, a Divina Comédia (c. 1304-1321), tem muito de vislumbre, suposição de falhas no opaco e imersão na subjetividade. Ao argentino foi caro, em seus Nueve Ensayos Dantescos (1982), provocar os leitores de Alighieri ao confronto às interpretações totalizantes e automatizadas, tão comuns quanto mais canônico é o objeto de estudo.
Para alcançar o objetivo, Borges sobretudo presta atenção às minúcias da obra: uns silêncios eloquentes, a aceitação de incertezas ou um sorriso de Beatriz, evidenciados por vezes em um único verso ou terceto, motivam reflexões aguçadas e, ao estilo do autor, exercícios imaginativos de rara erudição. Essa crítica contracanônica e disruptiva ainda deita-se sobre o onirismo (outro tema recorrente ao argentino) do poema, aproximações entre textos mais obscuros e a Comédia, uma consideração do Ulisses dantesco e uma tese sobre a paradoxal piedade do poeta-personagem. Não há oportunidade de identificar nominalmente cada ensaio a seu respectivo tema, pelo fato de repercutirem muitos destes em mais de um daqueles.
Uma vez que, conforme enunciou o argentino em conferência, “olvidamos que la obra está llena de delicias, de deleites, de ternuras”, o verso que abre esta anotação da leitura borgeana da Comédia ganha lume ao figurar a operação de minúcia e delícia de Jorge Luis Borges. Heloísa Abreu de Lima, no artigo Borges leitor de Dante (2018), diz que ele “não faz simplesmente uma descrição de determinado elemento do poema que o deleitou e despertou sua emoção. A partir do efeito que o detalhe tem sobre sua sensibilidade e operando uma crescente descontextualização, o autor assume total controle sobre a leitura e recepção desse mesmo detalhe.” Parece conveniente aproximar o comentarista Borges, no domínio da obra que estuda, de seu Pierre Menard, personagem que em última análise conseguiu extremo controle sobre Dom Quixote ao reescrevê-lo sem alterá-lo. Cred’io ch’ei credette ch’io credesse.
“É um ato de descontextualização constantemente atualizado, em que o detalhe passa a valer por toda a obra, sendo discutido, analisado e interpretado por si mesmo, sem, por outro lado, ser reduzido a elemento interpretativo de uma totalidade”, complementa Heloísa Abreu de Lima acerca da operação borgeana.
Para o argentino, a obra-prima de Dante Alighieri, ao cabo do Paraíso, poderia ser muitas coisas, provavelmente todas as coisas. O prólogo dos Nueve Ensayos Dantescos compara-a a uma “lámina de ámbito universal”, pintura fantástica onde estão prefiguradas “la historia del pasado y la del futuro, las cosas que he tenido y las que tendré”. Assumindo a universalidade do texto que estuda, Borges, menos paradoxal do que metódico, opta por não tratá-lo, ao contrário da crítica ortodoxa, de forma totalizante.
O florentino não intentou uma verdadeira topografia ou demografia do além-mundo, sem embargo de seus leitores crerem a ambição exequível em face do assombro causado pela concreção da Comédia. No “poema sacro”, a jornada do poeta-personagem, na qual é guiado primeiramente por Virgílio, que o retira a mando de Beatriz dos tormentos e o conduz até a visita aos círculos afunilados do Inferno e depois aos crescentes da montanha Purgatório, para então ser auxiliado pela própria donna angelicata nos concêntricos céus do Paraíso, representa a suprema alegoria. A partir da apresentação do extenso rol de habitantes de cada estágio sobrenatural e sua arquitetura, ela reflete e recria o estado das almas depois da morte, o homem em seus méritos e deméritos.
Muitos são os aspectos do poema passíveis de análises pormenorizadas. No entanto, a fim de experimentar a visão borgeana dos acontecimentos dantescos, há que atentar à peculiaríssima piedade do poeta-personagem florentino, cuja apreensão é fundamental para o entendimento da Comédia.
Ocorre, mormente durante a estada no Inferno, de Dante apiedar-se dos danados, a ponto de desnortear-se ou mesmo de sofrer censuras de seu mestre e guia, Virgílio, pela contrariedade de sua comoção. O mesmo dá-se nos outros estágios sobrenaturais. Autor cristão, mas demiurgo da obra, que ao cabo é a estrutura de um pós-vida em que Deus naturalmente é pressuposto de tudo, como a Alighieri é permitido comover-se com o sofrimento outorgado pela própria Divindade? Para Jorge Luis Borges, a resposta está contida na pergunta.
A Dante era necessário esconder sua onipresença de autor, porque não era Deus para julgar suas personagens: “El poeta es cada uno de los hombres de su mundo ficticio. Una de suas tareas, no la mas fácil, es ocultar o disimular esa omnipresencia”, diz o argentino ainda no prólogo dos Nueve Ensayos Dantescos. Portanto, ocorre ao florentino incluir-se como personagem da Divina Comédia, fazendo com que suas reações não coincidissem exatamente, em sua maioria ou nos momentos mais importantes, com as decisões divinas. “El problema era singularmente arduo en el caso de Dante, obligado por el carácter de su poema a adjudicar la gloria o la perdición, sin que pudieran advertir los lectores que la Justicia que emitía los fallos era, en último término, él mismo.”
No ensaio El verdugo piadoso, Borges concorda com Benedetto Croce, que afirma que Dante, como teólogo, crente e homem ético, condena os pecadores, mas sentimentalmente não condena e não absolve. Não condenar e tampouco absolver delineia o que o argentino chamará de “paradoxo insolúvel”. O ensaio trata da famosa passagem em que Francesca de Rimini conta a Alighieri seu adultério com o cunhado Paolo Malatesta, um amor inescapável que rendeu-lhes a morte e a danação (Inferno V). Da belíssima e comovente história, Dante apieda-se a ponto de desmaiar: “E caddi come corpo morto cade.”
“Dante refiere con tan delicada piedad la culpa de Francesca que todos la sentimos inevitable”, diz Jorge Luis Borges. Argumenta que um assassino, por exemplo, enquanto “ficção jurídica”, poderia merecer até a pena de morte, mas não o desventurado que cometeu assassinato, urgido por sua história passada e pela história do mundo. O argentino cita o adágio “tudo compreender é tudo perdoar”, e retorna à paradoja insoluble, vez que Dante Alighieri compreende e não perdoa, pois Francesca e os demais danados, por mais que urgidos por suas histórias e pela história universal, ainda penarão eternamente.
O florentino, para Borges, resolveu o paradoxo além da lógica, pois “sintió que los actos del hombre son necesarios y que asimismo es necesaria la eternidad, de bienaventuranza o de perdición, que estos le acarrean.”
Talvez porque a Divina Comédia trabalhe a perda como força motriz — Virgílio, pagão, confessa que já está perdido, e a admiração de Dante por ele não diminui; Virgílio perde-se para que Beatriz aconteça, a fé sucedendo o racional; mas Beatriz já é perdida quando Dante reencontra-se com ela, pois a musa estava morta quando o florentino escrevia; há diversos exemplos “menores” — , compreender aquilo que ao mesmo tempo se perde e se condena, contenha fator basal da obra.
Diante do breve mergulho na leitura borgeana da Divina Comédia, ganham lume as características, conforme enunciadas, de vislumbre, suposição de falhas no opaco e imersão na subjetividade, um salto no imponderável. É como se Borges dissesse de Dante, ou vice-versa, nos ensaios: Cred’io ch’ei credette ch’io credesse.