Há várias semanas alguns de nós percebemos o quanto a recente predileção de Caetano Veloso às teorias socialistas sob a influência do filósofo italiano Domenico Losurdo provocou alvoroço em parte da mídia nacional. Ora, convenhamos que esse revisionismo político-ideológico, mesmo partindo de um artista brasileiro conhecido mundialmente não seria para tanto, contudo, reconheço na sua auspiciosa conversa com o jovem acadêmico Jones Manoel algo que verdadeiramente despertou minha atenção: afinal, Nietzsche foi um precursor espiritual do nazismo?
É Losurdo quem originalmente acentua essa polêmica, ao reaproximar a filosofia nietzschiana das ideias antissemitas. Apesar da tônica de obras como Assim Falou Zaratustra, que focam na defesa do homem superior, alertamos, no entanto, que isso jamais poderia estar diretamente atrelado à engenhosidade política do nazi-fascismo europeu. Minha posição encontra apoio nas anotações privadas de O Anticristo, nas quais Nietzsche considera relevante a mistura das raças, haja vista ser “a fonte da grande cultura”. Logo, a defesa de qualquer raça superior representa estrategicamente o uso de valores estagnados e ultrapassados, sendo contrário a isso a defesa da vida em suas variadas formas, de modo a assegurar a “autossuperação” e não a “conservação”. Outro bom exemplo alinhado a esse entendimento vem dos antigos gregos, quando no processo de ensino-aprendizagem costumavam exercitar o agon, ou seja, a disputa entre pares, claramente incentivada desde os diálogos platônicos até as competições esportivas ou nos combates mortais. Isso aponta na direção da educação (Paideia) “agônica”, originalmente representada pelos heróis da mitologia grega, objetivando o crescimento íntimo mediante o próprio melhoramento.
Existe enorme diferença na atitude recíproca disposta a contribuir com uma elevação espiritual em relação à atitude ressentida daqueles apenas desejosos em extinguir os outros seres humanos pela diferença da cor da pele ou do credo. Apesar de a cultura grega ter lhe servido de parâmetro, Nietzsche, entretanto, nunca a estabeleceu como modelo de raça superior. Ademais, fontes históricas apontam que a partir da invasão dos dórios, provavelmente vindos da Ásia central em torno de 900 a 750 a.C., começam a surgir as famosas cidades-Estado, nas quais promoveu-se uma participação política mais ativa dos cidadãos, bem como uma progressiva secularização da cultura grega (Marcondes, Iniciação à história da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p.21-22).
A religião gradativamente teve seu papel reduzido, paralelamente ao surgimento de uma nova ordem econômica baseada em atividades comerciais e mercantis. Assim, perguntamos: as transformações ocorridas no mundo grego, graças à mescla de diferentes povos, não foram motivo de sobra para entendermos a força da sua cultura? Isto posto, resta asseverarmos o quanto a cultura helênica é devedora da mistura entre os povos estrangeiros, alcançando aquilo que o filósofo alemão considerou ser exemplo de superioridade. O desenvolvimento da espécie humana não produz melhoramentos conforme propagado pelo eugenista Francis Galton e outros darwinistas sociais – por isso, torna-se improcedente acreditar num sentido perfeito e absoluto de algum ser humano. Nietzsche, portanto, nunca incentivaria a meta de alcançar o “super-homem” exterminando os adversários – pelo contrário, a permanência destes promove a saudável dinâmica da alternância de forças, pois ninguém é eternamente superior.
O projeto “cultural” de Nietzsche só pode ser compreendido quando forem corrigidas eventuais distorções endereçadas ao seu pensamento. Precisamos apurá-lo de todos os desvios posteriores, intencionalmente cometidos em seu nome para corretamente afirmá-lo, opostos àquilo que interpreta Losurdo num pensador antifascista. Nesta ocasião, se o sentido de decadência remete ao processo de submissão do pensar, sobretudo partindo do Estado somente interessado em adestrar os indivíduos, acabaríamos nos tornando incorretos caso defendêssemos qualquer relação entre a filosofia nietzschiana e a política totalitária de líderes da extrema-direita. Para o filósofo alemão, o Estado será sempre uma instituição interessada na domesticação dos homens, impedindo-os, dessa forma, de desenvolverem-se culturalmente, tornando-os seres estereotipados.
Embora a noção do homem superior em comparação às demais tipologias desenvolvidas nos diferentes livros da vida de Nietzsche sofreu revisões, e até mesmo abandonos, é correto admitirmos a constante permanência no interesse dos temas da cultura e do seu fortalecimento. Após vários anos, a obra Crepúsculo dos Ídolos (1888) oferece considerações próximas daquelas defendidas durante o período das Conferências (1874) até Humano, Demasiado Humano (1878). Nietzsche nos conta que em 1888 os estabelecimentos de ensino superior foram desviados dos propósitos e dos meios cabíveis de alcançá-los. Parecem ter substituído a finalidade da formação humanística pelo sentimento político do Reich, gerando profissionais mais interessados na servidão ao invés da educação de estímulo ao “vir-a-ser”. No capítulo “O que falta aos alemães”, parágrafo 5, de Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche prossegue revisitando outra reflexão apresentada na Terceira Extemporânea em que relata a importância dos homens serem “eles próprios educadores, espíritos superiores, nobres, provados a cada momento, provados pela palavra e pelo silêncio, de culturas maduras, tornadas doces”. Postura realmente acima dos falsos eruditos que lecionam em ginásios e universidades ofertando aos jovens serviços parecidos com os de “amas-de-leite superiores”.
E no Brasil? Poderíamos balizar o nível dos nossos estabelecimentos de ensino? As queixas do ensino mercadológico, da apressada maturação dos alunos, do interesse na subserviência estadista, do pragmatismo e o ganho de dinheiro parecem ter contaminado a nossa sociedade, abarrotando várias instituições acadêmicas de promessas que assegurem aos estudantes uma formação rápida, útil e rentável. As coincidências são ainda mais claras quando, antes da chegada da pandemia, víamos a defesa do projeto político-pedagógico do governo federal: a defesa de implantar um ensino de gestão militarizada em várias escolas públicas do país; todavia, invocando as palavras de Nietzsche: os “privilégios militares impõem formalmente a excessiva frequentação das escolas superiores, ou seja, da decadência” (Idem). Dessa maneira, vemos a passos largos a profissionalização e a burocratização das escolas substituírem os dons artísticos. A censura cada dia maior das produções culturais, a inflexibilidade ou a “pressa indecente” do capitalismo a exigir a formação de trabalhadores dóceis, obedientes aos desígnios de uma propalada “família brasileira”, do cristianismo e da pátria.
Prestes a encerrar, acompanho o entendimento de Jorge Larrosa (Nietzsche e a Educação, op. cit., p.11) ao declarar que Nietzsche atualmente “escreve” textos muito melhores. Obviamente, é bem sabido que o filósofo nos deixou há mais de um século, porém, a despeito disso, sabemos o que ele escreve, e cada vez melhor, pois a interpretação de suas obras permanece contribuindo para o surgimento de debates profícuos e transformadores. Se a história revela pensadores incapazes de resistirem ao tempo, existem também aqueles em condição incomparável – a de atravessarem ao longo dos anos e essa é a razão pela qual Nietzsche “escreve melhor”. Acima das polêmicas ou da precisão exegética das suas palavras, o mais importante é a continuação da sua filosofia, da inovação da sua linguagem, da maneira extraordinária como faz vir à tona fatos despercebidos e sugere novas associações.