Para Jacqueline Hoolfendy
Para Wallace Cestari
No começo da pandemia, minha mãe, em sua obsessão organizadora, separou todas as nossas fotografias de infância em três álbuns diferentes e os entregou a seus três filhos. A capa do meu álbum tem um desenho aquarelado de um menino tocando violão em um ambiente bucólico. É aquele tipo de “caderno” da década de 1970 em que as fotografias, depois de reveladas, as que se salvavam do filme de 24 poses, eram grudadas em páginas brancas, duras e chanfradas e cobertas por um plástico adesivo. A letra indefectivelmente triangular do meu pai marca os anos de cada conjunto de fotos.
Em um primeiro momento, o gesto materno me deixou melancólica. A pandemia começava, as notícias de contaminação e de morte pela covid-19, dos hospitais lotados e da falta de conhecimento sobre a doença nos assustaram a todos e nos isolou em casa. O que aquele gesto materno significava? Uma despedida? Um “se não nos vermos mais”? Um “não se esqueça de quem você é?” que equivaleria a um “foi daqui que você veio”? Uma crônica visual de nossa história de família?
Superando a melancolia, decidi ver as fotos. Estamos todos lá, no passado, congelados como estátuas barrocas, flagrados em movimento. Almoços, nascimentos, festas de aniversário, primeiros passos, viagens, parquinhos. Tudo trazendo os índices de uma época: o silêncio sobre a transição da ditadura para a democracia, a alegria pobre das garrafinhas de guaraná vestidas com figuras decorativas de papelão, as ombreiras nas roupas femininas, os shorts de futebol curtos e apertados dos maridos bebendo e discutindo quem era melhor – Pelé ou Maradona (salve!).
Mas eu não me reconheço em nenhum desses registros. As ideias de objetividade, de precisão, de embelezamento produzidas pelo clique fotográfico que encantaram Baudelaire no salão de 1859 não me passam pela cabeça diante do álbum. Ao contrário, para mim, o conjunto se aproxima muito mais daquilo que Susan Sontag chamou de “eficaz relatório de perdas”. Me vejo criança, observo sofrida a juventude de meus pais, a alegria da reunião familiar e tudo isso afirma um je ne sais quoi de inocência e ironia – fomos todos congelados como índice da morte que viria, virá.
As fotos domésticas, hoje, estão no Instagram. Não só de família, mas de viagens, de comidas, de brindes entre amigos, de selfies, de gatos; fotos que “documentam” aquilo que gostaríamos que os outros vissem (não necessariamente gostaríamos de que nossos voyeurs estivessem conosco, claro; melhor não). Apesar da rapidez com que atualmente tocamos a tela do celular, escolhemos o filtro e postamos – o que nos dá a ilusão imediata de felicidade do outro –, nada tira de mim essa sensação de ruína artificial, de memento mori…
Além disso, nunca gostei de ser fotografada, a frontalidade exigida pela câmera sempre me intimidou. As pessoas que tentaram me fotografar tiveram que lidar com a frustração de que, no enquadramento, eu me transformo imediatamente num quadro cubista de Picasso – os olhos pulam para fora do rosto, a boca se desloca ora para a testa ora para a orelha. Me sinto tão constrangida quanto as personagens de Diane Arbus (1923-1971). Se eu tivesse nascido no tempo de Fox Talbot, ele teria repensado o nome com que patenteou a fotografia (1841): calótipo, isso porque kalós, em grego, significa beleza – outra ironia.
A ideia de fotografar, no entanto, sempre me seduziu. Fui aquela menina de classe média remediada, filha da inflação do Sarney, que sonhava em fazer artes visuais, mas teve que cursar letras para garantir um emprego. Apaguei o sonho de ser artista e abracei a vida de professora. Não foi tão sofrido assim, eu tinha a literatura. Desse modo, a arte nunca esteve completamente fora de meu alcance, pois podia ver reproduções de pintura, ler livros de história da arte e até orientar trabalhos de comparação entre poesia, ficção e pintura e cinema e fotografia.
A pandemia, no entanto, me trouxe um álbum de família e a sensação de morte iminente. Decidi então fazer um curso on-line de fotografia com a professora Jacqueline Hoofendy (vejam o trabalho maravilhoso dela em https://www.instagram.com/jacquelinehoofendy/). Esse curso me mostrou que a fotografia poderia estar muito mais perto da poesia do que imaginava. E o desafio era fazer autorretratos. Logo eu?
Provocação aceita, só pude realizar a tarefa ficcionalizando. Escrevi um poema sobre a figura da Medusa, inspirada pelo texto de Hélène Cixous, para quem, nós, mulheres, sempre temos a cabeça cortada, violentamente separada do corpo. Mas Cixous também nos lembra de que a Medusa foi capaz de parir (criar) pela boca (a figura mitológica foi estuprada por Posídon e dele engravidou). Pois que encarnei essa mulher cortada, que somos todas sob o patriarcado, me coloquei diante da câmera e me fotografei. Sou eu? Não apenas. Ensaio de si, exercício de outras identidades, eu vejo e não me vejo nas fotos. Entre a ficção e a realidade, somos todas medusas. O autorretrato me ensinou que o foco está sempre em outro lugar.