Na fila do caixa eletrônico da loja de conveniência do posto. Algumas pessoas na minha frente, e eu olhando para o lado, distraída, no que entra uma vizinha de bairro, fresca e jovial, bem mais magra, de cabelo luminoso e esvoaçante, óculos, vestidinho floral, sandália de salto, unhas pintadas, maquiagem leve. Bem hora de almoço, e ela com cara de manhã cedinho. Não jovem, viúva, filhos bem adultos… Apertei mais meus olhos sem óculos (ah, me recuso!) e matei a charada: tinha virado meninona. Não parecia uma adolescente, óbvio, mas uma meninona. Uma meninona madura, mas meninona. Parecia que ela ia sair dali e andar na enxurrada, chupar manga com casca (fazendo só um furinho), comprar picolé no carrinho, comer pipoca, pular corda no recreio…
Papinho cotidiano: E aí, tudo bem?/ Tudo bem./ E os meninos?/ Ah, daquele jeito que você sabe./ É, sei como é. (Ah, essas crianças!)/ Você emagreceu, você não usava esse tipo de roupa, você era mais esportiva, VOCÊ ESTÁ COM HISTÓRIA. Era evidente que ela estava com história. Para um bom observador, ou melhor, para uma boa observadora, um vestidinho floral já basta, tubinho então… ah, tubinho entrega, tubinho é aprendi na aula de ciências a diferença entre os sexos. Tubinho é simples, feminino, clássico, elegante, fica bem em qualquer tipo de corpo, marca sem vulgaridade. Uma mulher que tem (teve ou que quer ter) histórias tem pelo menos um tubinho no armário. Ponto pacífico. No que eu concluo você está com história, ela cala. Mas não resiste, confessa baixinho: Quer saber? Estou com um rolinho ali no carro. Adorei a comparação (comparação ou metáfora?), que sugere uma coisa leve, novelo de lã, linha de meada, renda de bilro. Não, não sugere outra coisa, não, olha a malícia! Uau! (incentivo minimalista). Passa atrás de mim, vai ao balcão do caixa, sai. Eu na fila, curiosidade de espiar o rolinho, mas muita gente atrás de mim, se eu saísse voltaria lá pro fim.
E para que espiar, para que saber o final da história se é tão melhor imaginar? Imaginar que o rolinho não é um senhor neurótico, gélido e empedernido, muito pelo contrário, que o rolinho gosta de picolé e pipoca, adora chuva e açaí, tira o sapato para andar na enxurrada e usa gíria; que ele, ao contrário de muitos desavisados, sabe o que significa um vestido tubinho, mata aulas na faculdade, bate papo no Facebook e no WhatsApp e tem uma conversa tão leve quanto a garoa paulistana (o chato é que você pensa que não vai se molhar e, quando vê, já era… Mas, como?! Se não era chuva, era só uma garoinha de nada?).
Não a vi mais, mas se visse não perguntaria e aí, como foi? Ah, nem. Filmes que acabam sem terminar? Gosto muito. Abrem um monte de possibilidades. O protagonista foi aprisionado por bandidos, levou um monte de sopapos, seu companheiro espera num navio para embarcarem para outro país onde possam curtir seu amor, livres de preconceitos e de ideologias políticas extremistas. Acaba o filme. Saio do cinema, peço um cartaz ao rapaz que trabalha lá, velho conhecido de uma pá de filmes a que assisto obsessivamente. Aparece outro cinéfilo e trocamos comentários. Ele lamenta o final trágico. E eu: Esqueceu que a família dele é muito rica, influente, poderosa? Claro que vão tirar ele dali, claro que ele vai se encontrar com o outro, claro que vai dar tempo, claro que... A mesma coisa com romances reais. Eu não quero saber o final, eu quero que não tenha um final (é, quase sempre).
Se pergunto, é com cautela, minimizando atritos, suavizando os dramas, botando compressa e salmoura, passando Vick Vaporube (tão refrescante!) e óleo de copaíba (cicatriza que é uma beleza!). Um amigo diz que está tudo maravilhoso, na paz, mas falta paixão. E você quer isso, ficar ansioso 24 horas, com o coração na boca, inseguro, morto de ciúme, panicado? Mas de jeito nenhum! Outro diz que foi tudo ótimo, um romance em Curitiba, aquela cidade bacana, mas… ah, esse romantismo é que atrapalha tudo!/ Ih, deixa disso, o romantismo é uma psicose maníaco-depressiva (ai, acho que exagerei!). Ela é bipolar./ Hoje em dia, todo mundo é bipolar.
Hoje passa Bacurau na TV, e Lisandro alerta que algo muito, muito sério está se passando na política atual. Eu penso em assistir. Eu penso em não assistir. Eu penso que a Meredith, de Grey’s Anatomy, tem um comportamento muito, muito estranho. Eu penso que eu tenho um comportamento muito estranho. Eu penso que nós temos comportamentos bem estranhos, afinal. Eu penso que os filmes e as realidades são praticamente a mesma coisa. E que a realidade, muitas vezes, é uma persona non grata, assim como a vírgula. Um amigo diz que eu tenho muita imaginação. Eu acho mesmo é que a realidade tem muita imaginação. E que nunca o passado foi tão passado como agora.