Era obrigado a percorrer longas distâncias a pé porque nem sempre tinha dinheiro para o ônibus. Contudo, alentava uma fantasia secreta: “Se a indústria automobilística soubesse quem sou eu, contrataria o melhor piloto de testes” – delirava, numa dessas caminhadas para o trabalho, uma Ferrari cintilando na cabeça.
Como não tinha recursos, e a sua vida estava detonada, decidiu recorrer ao sobrenatural. No dia em que foi levado ao terreiro, passou a vibrar positivamente o seu desejo e a soletrar com fé a palavra “carro”. A simbiose com o mundo dos espíritos era uma chance de triunfo, talvez de grande prêmio. Diante da mãe de santo, revelou as suas perturbações e o futuro que pressentia.
“Seu carma tá pesado, meu filho, mas a Rainha vai dar um jeito.”
Na sexta-feira, num cemitério distante e deserto, acompanhada de alguns cambonos, a mãe de santo iria receber a pomba-gira mais doida da umbanda.
“É com essa entidade que você vai” – dissera antes da incorporação.
O cavalo contorceu-se, sacudindo o corpo, num balé convulsivo e extravagante.
Num instante, a médium transformou-se: sob o efeito do transe, não era uma mulher que estava ali, mas um ser amplo, que ora tinha os gingados dos malandros, ora o manejo afetado dos travestis, ora o encanto singular da dançarina. Ela girava com a mão na cintura, dando passos graciosos segundo uma musicalidade interior que cadenciava o seu molejo erótico e pantomímico.
“Pra que tu me chamou, desgraça?” – perguntou Maria Padilha, um marafo sendo entregue-lhe rapidamente. Resmungando e andando em círculos, a mão esquerda apoiada na cintura, tomou um grande gole.
Com receio da pomba-gira, ele gaguejou, quase fraquejando:
“Sacomé, minha santa? Tô precisando de um carrão…”
A pomba-gira gargalhou escandalosamente, ridicularizando o pedido.
“Pra que tu quer um andador? Os casco são teu, miséria!” – e continuou o deboche, entre rosnados e goles longos de cachaça.
Um dos cambonos acendeu uma vela que o vento tinha apagado.
“Eu vou ajudar tu, desgraça, mas tu vai fazer o que eu pedir.”
Por influência ou não daquela feitiçaria, o fato é que, um mês depois, ele ganhou num sorteio um carro novinho em folha e decidiu amaciar o motor na rodovia, antes de vendê-lo. Testando a potência na pista plana, explorando o câmbio aveludado, era uma máquina que respondia à sua sede de velocidade, a paisagem passando rapidamente pelos lados.
Quando estava a 150 quilômetros, surgiu inesperadamente um pangaré na sua faixa de rolamento. Para não atropelar o animal, girou o volante para a direita, tentando alcançar o acostamento – manobra inútil porque as rodas, nesse momento, desprenderam-se do asfalto, o carro rodopiou e, imediatamente, começou a capotar inúmeras vezes, terminando por fim arrebentado no tronco de uma árvore. Com o estardalhaço, o cavalo, assustado, retornou aos pinotes para o matagal, de onde tinha surgido inesperadamente.
Bem mais tarde, os homens da polícia rodoviária chegaram ao local. O corpo do motorista jazia num canto, ao lado de uma touceira, todo retorcido, à espera de remoção.
“O que eu coloco no relatório como causa do acidente?” – indagou o sargento.
Esfregando o lenço no Ray-Ban, o oficial respondeu, um músculo de ironia pulsando imperceptível no rosto.
“Complexo de Barrichello.” Com uma risadinha perversa, completou: “A punheta desses meninos é a Fórmula l”.
Não muito longe, o rocinante suspendeu a cabeça e olhou desinteressado para o movimento de carros e pessoas. Como se a vida fosse veículos circulando nas duas direções todos os dias – e o capim tenro, que estava afinal por toda parte, suculento e farto, servisse apenas para uma boa refeição nos dois lados da via –, abaixou mais uma vez a cabeça e continuou se fartando naquele mar de verde, indiferente aos infortúnios dos motoristas que passavam, indo e vindo, pela estrada sem fim.