[Coautores: Emanueli Angela Cristaldo Viana[1]e Weiny César Freitas Pinto][2]
O Mito do Contexto (1996) e O Fascismo Eterno (1998) são dois pequenos ensaios, respectivamente de dois grandes intelectuais do século XX: o filósofo austro-britânico Karl Popper (1902-1994) e o escritor italiano Umberto Eco (1932-2016). Gostaríamos de relacionar certas ideias destes dois textos na articulação de uma análise a respeito do relativismo e do fascismo. O relativismo pode de algum modo levar ao fascismo? Relativismo e fascismo se interligam?
Quanto ao ensaio de Popper, O Mito do Contexto, trata-se de uma investida contra o relativismo. O filósofo declara que pretende não apenas refutá-lo, mas evidenciar o quão trágico ele pode vir a ser, se tomado de forma generalizada. O autor destaca que o relativismo é, em suma, uma exigência conceitual que alega a impossibilidade de haver discussão frutífera, racional, caso os sujeitos não compartilhem teoricamente de um mesmo contexto. O pressuposto de fundo aí é o de que é preciso que todos os sujeitos em um debate racional assumam um comum acordo, segundo o qual não haja nenhum tipo de discordância quanto ao valor dado ao meio em que estão integrados, isto é, pode-se de tudo discordar, menos do contexto. Essa forma de pensar, segundo Popper, leva-nos, cedo ou tarde, a uma “guerra das armas” e inviabiliza a “guerra de palavras”, tão necessária ao debate racional. Portanto, o conceito de relativismo, defendido e valorizado por muitos como um conceito democrático, porque cria a lógica de “a cada contexto, sua verdade”, acaba por impor, no final das contas, uma enorme barreira antidemocrática, que leva à violência e à guerra.
Já O Fascismo Eterno, de Eco, expõe um momento narrativo da juventude do escritor, ilustra a “Itália de Mussolini” e de outros regimes totalitários da mesma época, como o nazismo. O autor questiona sobre o que pode vir a ser o fascismo e o descreve como um “totalitarismo confuso”, sem uma base de ideais bem definidos, cujas características são: o tradicionalismo, o estímulo ao medo e ao diferente, a rejeição ao pensamento crítico, o nacionalismo, a obsessão por conspirações, a recusa de ideias modernas, a repressão à sexualidade, a constante vontade de guerra, a excessiva vontade de criar inimigos. Características que estão impregnadas na vida social e que, muitas vezes, passam completamente despercebidas por nós, seja porque não lhes damos atenção, seja porque simplesmente preferimos ignorá-las.
A esta altura, podemos então perguntar: há alguma relação entre relativismo e fascismo? O pensamento relativista gera um possível fascismo? E, no plano prático, devemos sempre ter “paciência” e debater com pessoas que alimentam pensamentos e argumentos fascistas, com o compromisso de educá-las e emancipá-las criticamente? Ou simplesmente devemos ser intolerantes com o intolerante? Ignorá-lo, com o intuito de não difundir sua intolerância, é a melhor estratégia ética e política que podemos adotar?
O relativismo e o fascismo: a ponte entre ambos
Como vimos, a premissa principal, e talvez a que gera toda a polêmica em torno da análise de Popper, é que, para o relativista, só é possível existir uma discussão racional, um debate produtivo, se os integrantes dessa discussão estiverem de acordo em relação a um mesmo contexto. Naturalmente, a ideia de uma verdade para cada contexto se opõe à ideia de uma verdade universal. Para Popper, é imprescindível ao debate racional que exista um choque de argumentos. O autor destaca que a sociedade ocidental evoluiu graças ao choque de culturas, ou seja, foi através dos diversos debates com o “diferente”, da abertura ao conhecimento estrangeiro, portanto, de outros contextos, que, de fato, as ciências e a cultura ocidentais se desenvolveram. A tradição crítica, formulada pelos antigos, foi, justamente, a de confrontar pensamentos anteriores, de outros contextos, e de diferentes autores.
Será, então, que o relativista tem apreço pelo tradicionalismo, já que não há aí abertura para a discussão de argumentos oriundos de contextos distintos? Quanto ao se isolar em sua verdade contextual, isso não significa recusar um argumento exterior ao contexto? A ideia de rejeição da diversidade, dos “intrusos”, não é medo do diferente, transformado em “inimigo”?
Eco, quando descreve as primeiras características do fascismo, caracteriza-o como um culto ao tradicionalismo, uma recusa da modernidade. O fascismo venera o irracionalismo, reverencia a “ação pela ação”, ou seja, o fascismo é contra qualquer tipo de reflexão e debate críticos. O resultado disso: o populismo, a existência de apelo à opinião comum, e, caso aí exista desacordo, haverá então um temível sinal de diversidade: inimigo à vista!
Portanto, fascismo e relativismo se relacionam, especialmente, quanto ao fato de que ambos parecem venerar o argumento de que o debate crítico e as diferenças não devem ocorrer. Cria-se assim uma “bolha de identidade” e o que está fora dela deve ser ignorado, ou mesmo, eliminado. Essa bolha identitária é ao mesmo tempo uma “bolha contextual”, ao passo que ela relativiza a ideia de verdade universal e acaba por criar o dogma do contexto, segundo o qual a discussão crítica é ignorada, inviabilizada pela ausência do confronto de argumentos. Consequentemente, o pensamento relativista e o fascista são igualmente irracionais, estando em comum acordo quanto ao isolamento arbitrário da “verdade” em um único e determinado contexto. Para ambos, a reflexão crítica, provinda do choque de culturas, é um “perigo” que deve, a todo custo, ser evitado.
O pensamento relativista e o fascista – ao serem dogmáticos, ao não aceitarem argumentos exteriores, ao rejeitarem o mundo externo, ao reduzirem-se a um determinado contexto, ao desprezarem o debate crítico mútuo, ao temerem a diversidade, e, por consequência, desprezarem tudo aquilo que pretende ser “novo”, graças à tradição científica, à discussão racional, baseada na oposição crítica de ideias – são muito perigosos, não apenas para o mundo da reflexão crítica e da ciência, mas também para o mundo social e político.
Devemos combater a intolerância com intolerância?
Imaginemos não só argumentos fascistas sendo impostos como verdade, a partir de determinado contexto, mas também atitudes sendo justificadas exclusivamente pelo critério contextual, males tão perigosos como o machismo, o racismo, a homofobia e tantas outras posições intolerantes. Considerando esse cenário, nos perguntamos: devemos argumentar com intolerantes, com o objetivo de criarmos um espaço de emancipação crítica, de educação? Ou simplesmente devemos ignorá-los e, se preciso for, agirmos de maneira intolerante? Há aí alguma solução de meio termo?
Retornemos a Popper, dessa vez em Sociedade Aberta e seus Inimigos (1974), texto no qual o autor trata justamente das questões apresentadas anteriormente. Tentaremos, a partir do argumento do filósofo, formulado em seu famoso “paradoxo da tolerância”, responder aos questionamentos que fizemos.
A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância. Nesta formulação não quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia. Mas deveríamos proclamar o direito de suprimi-las, se necessário mesmo pela força, pois bem pode suceder que não estejam preparadas para se opor a nós no terreno dos argumentos racionais e sim que, ao contrário, comecem por denunciar qualquer argumentação; assim, podem proibir seus adeptos, por exemplo, que deem ouvidos aos argumentos racionais por serem enganosos, ensinando-os a responder aos argumentos por meio de punhos e pistolas. Deveremos então reclamar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Devemos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que se considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação ao homicídio, ao sequestro de crianças ou a revivescência do tráfico de escravos. (POPPER, 1974, p. 289).
Alinhando-nos ao posicionamento de Popper, sustentamos a seguinte ideia: a intolerância deve, primordialmente, ser combatida no plano da racionalidade. Os argumentos devem ser a base para qualquer discussão, mesmo que, para o intolerante, não haja nenhum tipo de debate mútuo. A paciência e a racionalidade tornam-se então o princípio básico para a existência de qualquer debate, uma vez que deve ser a obrigação de qualquer indivíduo, minimamente racional, a coragem e a disposição de buscar e contribuir para a educação, a emancipação do intolerante. Entretanto, caso falhe o processo de educação e emancipação crítica, e o intolerante continue ultrapassando os limites básicos de uma discussão racional, continue perpetuando a sua intolerância, deve haver então a ação de suprimir quaisquer tipos de expressão intolerante, para preservar a tolerância.
Do ponto de vista concreto, é preciso que o Estado considere leis que proíbam qualquer ato intolerante que vá de encontro à segurança do bem comum, além de sempre buscar incentivar a educação crítica da população, com o objetivo de estimular o respeito e a igualdade entre os indivíduos. Já quando se trata do nosso papel em particular, como cidadãos, devemos sempre buscar o debate racional, ainda mais aqueles que trabalham com a investigação e o conhecimento crítico da realidade, ou seja, é dever da academia e dos indivíduos que a constituem buscar sempre realizar o compromisso educacional de emancipação crítica de qualquer alienação existente, inclusive a da intolerância. Isso parece pouco? Demasiado romântico e idealista? Quais seriam então as alternativas? Qual seria afinal o último ato de supressão da intolerância a fim de que a tolerância seja preservada?
Referências
POPPER, K.A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução: Milton Amado. Belo Horizonte: Editora Itatiaia ilimitada, 1974. v 1, 394 p.
______. O mito do contexto. In: POPPER, K. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Lisboa: Edições 70, 1996. p. 55-90.
UMBERTO, E. O fascismo eterno. In: UMBERTO, E. Cinco escritos morais. Rio De Janeiro: Editora Record, 1998. p. 15-26.
[1] Acadêmica do curso de filosofia da UFMS. E-mail: emanuelicristaldo@gmail.com
[2] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O artigo abre a série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios.
Muito bom, obrigado pela ampliação de conhecimento.
Muito bom, parabéns!