Em sua História da Guerra do Peloponeso, Tucídides demonstra o valor da imparcialidade ao narrar os fatos a partir de suas causas e ao empreender um esforço na exposição de suas conclusões em relação aos fatos. A concepção de “História” elaborada por Tucídides possivelmente contribuiu para o fortalecimento da concepção da História como uma ciência diretamente ligada à curiosidade e à capacidade humanas de investigar e identificar aspectos fundamentais da vida humana no tempo passado e emitir narrativas sobre ele no tempo presente.
Atrevo-me a afirmar que a História utiliza um recurso semelhante ao da Literatura, especificamente o recurso “narrativa”, tão bem empregado no gênero literário que conhecemos como “romance”. Todavia, enquanto o historiador elabora suas narrativas com base em documentos que comprovam fatos, o romancista escreve suas narrativas respaldadas em sua imaginação e criatividade, seguindo ou não a verossimilhança. Se a tarefa do historiador necessita de um apego aos fatos, a do romancista resulta da liberdade de ele valer-se de fatos históricos e retratá-los da maneira que lhe for aprazível, e se assim o desejar, empregá-los para desenhar uma imagem qualquer da sua narrativa ou até mesmo como pano de fundo de sua obra ficcional.
Do mesmo modo que a História e a Literatura servem-se do recurso da “narrativa”, elas também lidam com o “tempo”. O historiador busca narrar os acontecimentos e entendê-los considerando principalmente uma linearidade cronológica. Ele se preocupa em juntar elementos históricos frequentemente fragmentados e fornecer coerência à sua narrativa acerca dos acontecimentos, não só no tempo, mas também no espaço. Ao passo que o romancista, ao narrar uma história, pode-se dar ao luxo de manusear o tempo a seu bel-prazer. Ainda que na História e na Literatura a narrativa seja utilizada como recurso e ambas versem sobre a questão do tempo de forma diferente, parece-me razoável considerar que elas têm uma provável relação. Permitam-me buscar um exemplo de romance que porventura ilustra essa relação e presumivelmente abra margem para pensarmos sobre “a função da narrativa no atual cenário político brasileiro”; pretendo tratar dessa questão mais adiante, por ora vou me deter ao romance. Recorro, então, a Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez.
A importância desse romance se inscreve, especialmente, porque o leitor encontra nele a narrativa de uma história universal, mas contada de uma forma singular. A obra pode ser considerada uma espécie de ícone do que se convencionou chamar de “realismo mágico” e suscitou uma ruptura com a predominância das literaturas norte-americana e europeia, dando uma visibilidade irrepreensível à literatura latino-americana. O romance de Gabo narra a história da família Buendía ao longo de pelo menos sete gerações; família que tem sua gênese no casal de primos José Arcadio Buendía e sua esposa Úrsula Iguarán. Ao sonhar com uma cidade de espelhos chamada Macondo, José Arcadio Buendía, juntamente com Úrsula e mais cerca de 20 pessoas, decide sair do local onde mora e fundar a cidade de Macondo, em um lugar longínquo de difícil acesso entre montanhas e um misterioso pântano.
No decorrer do romance, o leitor acompanha ao longo de cem anos a história de sete gerações da família Buendía e igualmente testemunha o desenvolvimento da mítica cidade de Macondo. São aventuras e desventuras que brotam das páginas de um livro agradável e espirituoso no qual, de alguma maneira ou outra, independente de qual geração, os membros da família Buendía sofrem de solidão. Do romance surgem figuras fantásticas como uma menina que come terra e a argamassa das paredes, um padre que ensina como ascendermos ao céu por meio do consumo de chocolate e uma mulher tão linda que não podia ser considerada desse mundo.
O romance confirma a capacidade excepcional de Gabriel García Márquez manejar o tempo conforme o seu desejo. Nas primeiras deliciosas linhas do romance, o leitor se depara com o passado, o presente e o futuro misturados. Desde o início, os tempos se embaralham no livro, uma vez que o narrador situa-se no presente, mas já nas primeiras páginas refere-se a personagens de gerações futuras que ainda vão nascer. Parece-me merecedor de destaque o fato de que Cem Anos de Solidão também pode ser lido como uma alegoria da América Latina colonizada e oprimida que luta para romper com o colonialismo, pois o romance simultaneamente apresenta um quadro político marcado por diversas tentativas de grupos militares e de companhias estrangeiras de dominar o território e assumir o poder local.
Visto por esse ângulo, a passagem do romance na qual Gabriel García Márquez remete a um episódio verdadeiro na história da Colômbia, “o massacre das bananeiras”, ocorrido em 1928, se inscreve como uma amostra bastante representativa dessa alegoria. Em resumo, trabalhadores colombianos explorados por uma empresa multinacional se organizaram para reivindicar condições trabalhistas dignas e justas diante da situação precária de trabalho em que viviam. Entre suas reivindicações, encontram-se: aumento de salário, descanso semanal e férias. Os trabalhadores acabam sendo assassinados pelos jagunços dos chefes da empresa em uma ardilosa emboscada. O interessante é que no romance os “gringos” criam uma narrativa negacionista após o massacre, uma espécie de cortina de fumaça para encobrir o sangrento episódio.
Em seu romance, Gabo trata das consequências do massacre de maneira primorosa sob o olhar de uma testemunha: José Arcádio. A testemunha não só presencia a carnificina como, além disso, vê os mais de “três mil corpos” sendo transportados nos vagões de um trem e a desova deles ao mar. Como desdobramento imediato, ninguém em Macondo acredita no relato de José Arcádio sobre o massacre que testemunhou – os moradores da cidade acham que ele ficou “louco” e que os trabalhadores foram simplesmente trabalhar em outra cidade. Em seguida, desaba um verdadeiro dilúvio em Macondo por quatro anos, fenômeno que impede as pessoas de saírem de suas casas e as obriga a adiarem seus planos, e até postergar a própria morte, como faz a matriarca Úrsula ao “decidir” morrer apenas quando “estiar”.
Provavelmente, ao se remeter ao massacre histórico, Gabriel García Márquez pretendia explicar que a personagem capaz de reconhecer o fato desolador é a que vive a realidade, enquanto aquelas que negam o fato são as que vivem realmente em uma fantasia. A forma como Gabo expõe essa oposição entre realidade e fantasia e a forma como tratei aqui da relação entre História e Literatura ressaltando a questão da “narrativa” me conduz a um campo que extrapola “as barreiras” da História e da Literatura, me refiro ao campo da política, que também utiliza a narrativa como recurso ou instrumento. No caso da política, contudo, tendo a ponderar que o uso da narrativa seja imbuído de maior complexidade por nem sempre a narrativa carregar de modo tão explícito as razões e intensões a ela subjacentes.
Ao delinear o campo da política, anseio compreender o lugar que a narrativa ocupa na conjuntura política brasileira contemporânea. Recupero, portanto, a questão que mencionei acima sobre “a função da narrativa no atual cenário político brasileiro”. Inicio pela seguinte pergunta: como podemos identificar o emprego do recurso da “narrativa” no atual cenário político brasileiro?Penso que, por um lado, de antemão, rotineiramente fatos históricos e científicos vêm sendo negados nesse cenário; por outro, não considero o atual cenário um ambiente de “realismo fantástico”, embora em muitos momentos se pareça. Todavia, nesse cenário, algumas frases desconexas da realidade parecem me contradizer, mas não pretendo extenuar o leitor me reportando a elas. Dedicarei o restante do espaço para tratar da seguinte frase: “no Brasil, não existe racismo”.
A desconfortável frase “no Brasil, não existe racismo”, declarada em alto e bom som sob a luz dos holofotes e por “infeliz coincidência” dita um dia depois do assassinato brutal de um homem negro em um hipermercado em Porto Alegre, não me parece sem propósito, ao invés disso, soa como mais um componente de uma narrativa que vem sendo construída gradativamente. A meu ver, a referida frase não tem como ambição simplesmente gerar polêmica ou abrir uma discussão sobre o problema do racismo no Brasil, ao contrário, ela assume uma função tática dentro de uma “ideologia política”. Ao servir-me desse termo (ideologia política) em hipótese alguma tenciono incitar a construção de uma teoria conspiratória como contraposição às tantas que atualmente estão sendo disseminadas.
Talvez seja necessário suspender a nossa ingenuidade e interromper o nosso estado de estupefação em face de palavreados que parecem à primeira vista simplesmente uma “fala grotesca”, para assim se perceber que uma das características mais marcantes da ideologia à qual me refiro consiste justamente na “negação” de fatos históricos e dados científicos. Ora, a negação do racismo pertence ao domínio da negação do óbvio. Negar a existência do racismo no Brasil expressa a rejeição de um fato que perpassa a estrutura da sociedade brasileira desde a escravidão até a opressão, a violência e o preconceito cotidiano que os negros brasileiros sofrem ainda hoje em pleno século XXI. Porém, dentro da perspectiva ideológica que tenho em vista aqui, afirmar que “no Brasil, não existe racismo” parece fazer todo sentido, uma vez que a negação é uma ferramenta manipulada com o intuito de tentar destruir fatos ou, pelo menos, as narrativas que os sustentam e criar outra narrativa.
Sob esse enfoque, o livro Guerra pela Eternidade, de Benjamin Teitelbaum, possivelmente confirma o meu ponto de vista – ainda prematuro, é preciso ressaltar – e fornece uma importante chave interpretativa sobre a ascensão de uma ideologia política denominada por ele de “tradicionalismo”. Segundo o pesquisador que se dedica à análise da ideologia política de extrema-direita, o “tradicionalismo” consiste em uma corrente política que se distingue do conservadorismo tradicional por ser mais radical em suas posições antiglobalistas e antiprogressistas, além de ser dotado de um forte viés religioso e utilizar a “negação” como recurso de destruição.
O tradicionalismo tem como objetivo a destruição e o retorno a um passado remoto, essa “ideologia política” não julga ser possível transformar ou aperfeiçoar a história da humanidade. Ela se baseia no pressuposto de que é necessário destruir tudo aquilo que ela considera ter sido nocivo para as sociedades, como a emancipação das mulheres e o multiculturalismo. Na percepção do tradicionalismo, a humanidade encontra-se no desfecho de um extenso “ciclo de declínio”. Desde suas origens, tal ciclo promoveu o extravio do “conhecimento verdadeiro da religião” e da noção de “ordem nas sociedades”. Se Benjamin Teitelbaum está correto em sua análise, e deduzo que sim, frases como “no Brasil, não existe racismo” além de serem refutadas de imediato, precisam ser enxergadas para além da mera aparência, pois a aparência de declarações como essas camuflam seu verdadeiro poderio de destruição.
boa análise