[Coautor: Weiny César Freitas Pinto][1]
Um espectro ronda a filosofia contemporânea: o espectro do romantismo. Todas as potências filosóficas após Hegel se uniram em uma campanha contra ele.[2] De fato, o espírito contemporâneo mais se regozija da morte conceitual de Hegel do que a lamenta. Nós, porém, não buscamos com este ensaio “ressuscitar” o filósofo alemão, tampouco comemorar sua ruína. Daremos um passo atrás e nos direcionaremos apenas àquilo que, em parte, o sistema hegeliano pretendeu ser resposta: à questão romântica. Inicialmente nossa reflexão se ocupará do surgimento e das tendências do romantismo. Em seguida, concentrando-nos na figura simbólica de Hegel, explicitaremos como o movimento romântico formou uma filosofia romântica. Nesse ponto, localizaremos o romantismo no exato início da filosofia contemporânea e, a partir de um diagnóstico realizado por Badiou, especularemos brevemente se um espectro romântico teria permanecido na filosofia após Hegel.
Segundo Reale e Antiseri (2005), para o movimento romântico ser compreendido, é necessário concebê-lo como o resultado do encontro de dois outros movimentos. O primeiro, de origem alemã, ocorrido entre 1780 e 1790 e denominado Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto). As características principais desse movimento são: 1) a redescoberta da natureza e sua glorificação como força onipotente; 2) a afirmação do gênio, isto é, do dom natural da inventividade e da criação; 3) o panteísmo, isto é, a doutrina de que o divino se manifesta em todo o universo e não só na razão humana, como propunha o deísmo iluminista; 4) a valorização da liberdade e, consequentemente, o ódio à tirania; e 5) a apreciação das paixões fortes e impetuosas, suprimidas no Iluminismo.
Contra o caos e a descompostura dos Stürmer (ou seja, dos membros do Tempestade), surge o neoclassicismo, entre os séculos XVIII e XIX, o segundo movimento precursor do romantismo, igualmente de origem alemã. Com o neoclassicismo, o clássico renasce no espírito alemão, não como repetição daquilo que os gregos antigos fizeram, mas como reapropriação do seu olhar. Isso não significa apenas conferir centralidade à natureza, como já faziam os Stürmer, mas partir da natureza e ir além dela: ir à ideia. Trata-se novamente, por exemplo, de descobrir as belezas da natureza e associá-las ao belo perfeito. Nisso, a natureza adquire um limite: a própria ideia. Assim, explicam Reale e Antiseri (2005, p. 7, grifo dos autores): “[…] o neoclassicismo aspirava a transformar a natureza em forma e a vida em arte, não repetindo, mas renovando o que os gregos haviam feito.”.
Do impacto entre a “paixão” do Sturm e o “limite” do neoclassicismo, surge o romantismo. Esse movimento foi desenvolvido em boa parte da Europa entre os séculos XVIII e XIX, mas foi na Alemanha, nesse mesmo período, onde sua manifestação foi mais exemplar. O romantismo contemplou, além da filosofia, a poesia, as artes figurativas e a música. Em todas essas áreas, a tendência principal era o amor pela inquietação e pela irresolução – sentimento sintetizado pelo termo alemão Sehnsucht, que etimologicamente pode significar “buscar o desejo”. O problema é que o desejo do romântico não pode ser completamente satisfeito porque o objeto desejado é o infinito, enquanto as experiências humanas são sempre finitas. Por isso, o desejo romântico se estende em um perpétuo tender ao infinito e, nesse processo, basicamente caberia à filosofia romântica captar e explicar a relação entre finito e infinito.
Outra tendência do romantismo é a ressignificação da natureza como grande organismo e como a própria força divina. Resgata-se, com isso, o sentido grego de physis, ou seja, da natureza como princípio, como realidade primordial e fundante. Além disso, irrompe-se o sentimento de pânico diante da pertença do sujeito ao uno-todo, gerado pela compreensão da subjetividade como mero instante da totalidade. Permanece, desde o Sturm, além do anseio pela liberdade, a apreciação do gênio criador, mas, agora, este se apresenta como manifestação do infinito no finito, por meio da arte. Por possuir esta mesma qualidade, de manifestar o eterno no sujeito, a religião é revalorizada. Por influência do neoclassicismo, a grecidade se mantém em pauta.
Todas essas tendências são verificadas na filosofia e na arte românticas. Todavia, explicam Reale e Antiseri (2005), além destas, o romantismo filosófico se caracteriza por mais uma: o destaque à intuição e à fantasia, em contraposição ao Iluminismo, concentrado na fria razão. Por esse motivo os autores afirmam: “Todo o idealismo, portanto, é filosofia romântica” (REALE; ANTISERI, 2005, p. 14, grifo dos autores). De fato, o idealismo nutre o desejo, como o romantismo em geral, de superar algumas asserções do Iluminismo: superar, por exemplo, o argumento de que a “coisa-em-si” estaria fora da consciência, mas poderia, mesmo assim, ser objeto do intelecto puro.
Desse modo, apesar das diferenças evidentes entre romantismo e idealismo, há, no entanto, o entrecruzamento de alguns de seus traços paradigmáticos, tais como o esforço de ambos em se contrastarem ao Século das Luzes. Nisso, Hegel é o grande exemplo. O filósofo nutre aquele anseio pela liberdade e valoriza suas manifestações, a ponto de considerá-la a essência do espírito. Ele também segue a tendência de reavaliação da religião, considerando-a, como apontam Reale e Antiseri (2005, p. 13), “[…] o momento mais elevado do espírito, superado somente pela filosofia.”. A grande renovação que Hegel faz da grecidade é igualmente um ponto em comum: redescobre a clássica dialética grega, desenvolvendo notadamente sua dimensão especulativa, além de utilizar amplamente os fragmentos de Heráclito em sua obra Ciência da Lógica.
Com efeito, o principal traço romântico de Hegel é sua tentativa de resposta à questão: como relacionar o finito e o infinito? O filósofo não só se concentra em pensar essa relação, mas responde à questão por meio de sua proposta de autorreflexão do espírito:
O Streben infinito (ou seja, o “tender”) romântico, por meio do conceito hegeliano do espírito como “movimento-do-refletir-se-sobre-si-mesmo”, resolve-se e identifica-se em sentido positivo, porque é resgatado de sua indeterminação. (REALE; ANTISERI, 2005, p. 105, grifo dos autores)
Hegel concorda que o intelecto deve ir além de sua finitude, isto é, deve ir até o infinito, pois é neste que se encontram o real e o verdadeiro; entretanto, problematiza a ambição romântica de alcançar o absoluto “imediatamente”, seja pela fé, seja pelo sentimento ou pela intuição. Para ele, isso deve ocorrer “mediatamente”, pelo método científico da dialética – e aqui, nota-se, a dialética é a resposta de Hegel ao problema romântico da relação entre finito e infinito.
Ou seja, Hegel foi influenciado por tendências românticas, e, de algum modo, foi um filósofo romântico. Com isso, localizamos o romantismo no exato início da filosofia contemporânea. Porém, será que a rejeição ao idealismo e à metafísica, que constitui o grande programa da contemporaneidade, ramificou-se na rejeição ao espírito romântico? Especulemos.
Conforme explicitado, a grande questão romântica, ao menos para a filosofia, é a relação entre finito e infinito, ou, diríamos, entre o uno e a parte, entre o universal e o particular. Posto nesses termos, poderíamos supor que cada componente da questão romântica – a paixão e o limite – foi separadamente acolhido e desenvolvido pelas duas grandes tendências da filosofia contemporânea, conforme Badiou (1994): a tendência hermenêutica e a tendência analítica.
Isso ocorreria da seguinte maneira: a tendência hermenêutica da filosofia se voltaria mais ao componente finito – ao particular e ao subjetivo, valorizando sua revolta e seu apreço pelo acaso, tal como a “paixão” dos Stürmer; enquanto a tendência analítica se voltaria ao componente infinito – valorizando certa ideia formal de “universal”, por meio da lógica, tal como o “limite” ideal do neoclassicismo.[3] Esses dois componentes teriam permanecido sempre separados no interior da filosofia contemporânea, pois a tentativa de relacioná-los (finito/infinito – paixão/limite) ameaça reanimar tudo aquilo que o pensamento contemporâneo rejeita: o idealismo, a metafísica. Desses dois elementos, a filosofia contemporânea se afasta com veemência, o que a faz afastar-se também da questão romântica. Mas pode a filosofia sobreviver assim, bipartida? Só há este modo de colocar o problema: de um lado, o finito, a paixão, de outro, o infinito, o limite? Badiou argumenta que não, pois:
[…] nem uma nem outra dessas tendências pode hoje proteger e salvar o desejo de filosofia. E isto porque nem uma nem outra sustenta todos os componentes desse desejo. Nem uma nem outra sustenta ao mesmo tempo a revolta crítica, a racionalidade lógica, a universalidade e o sentido da aposta e do acaso. (BADIOU, 1994, p. 15, grifo do autor)
Se é perigoso à filosofia ter seu desejo fragmentado, separando assim completamente finito de infinito, paixão de limite, também não é questão simples relacionar os dois. De igual modo, não nos parece que as soluções dos filósofos românticos para o problema sejam totalmente satisfatórias. Não precisamos concordar com a solução romântica e idealista. Se ela não é adequada, rejeitemo-la. Mas não nos esqueçamos que o espectro romântico ainda paira sobre nós, contemporâneos, e continua impondo-nos a sua questão: há relação entre finito e infinito, entre paixão e limite? E mais: deve o infinito ser buscado? Deve a paixão ser vivida?
Referências
BADIOU, A. Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia, 5: do romantismo ao empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005.
[1] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
[2] Paráfrase da abertura do Manifesto do Partido Comunista. Cf. MARX; ENGELS, 2008, p. 9.
[3] Compreendemos a estranheza causada pela associação dos termos infinito/limite. Compreendemos igualmente a estranheza em associar esses termos à filosofia analítica. Esclarecemos que o sentido dessa dupla associação tem a ver principalmente com o aspecto formal que ela porta. As noções de “infinito/limite” como característica da filosofia analítica só têm sentido se forem compreendidas nos termos de certa formalização lógica (limite) da ideia de “universal” (infinito).
O texto é o segundo da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira o primeiro artigo, Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.