O estado onírico é mote caro a Bob Dylan e, contudo, pouco discutido entre os estudiosos de sua obra. Apenas na primeira década da carreira do compositor de Duluth, Minnesota, ganharam lume as canções Bob Dylan’s Dream (The Freewheelin’ Bob Dylan, 1963), Bob Dylan’s 115th Dream (Bringing It All Back Home, 1965) e I Dreamed I Saw St. Augustine (John Wesley Harding, 1967). As letras são incrivelmente dessemelhantes, como ousam ser as fabulações de quem dorme, de enlace contido tão somente no fato de discorrerem acerca de sonhos do cancionista.
A primeira delas, partícipe do suprassumo do folk norte-americano, é imberbe em nostalgia. Diz da ocasião em que o exausto poeta, rumando a oeste em um vagão de trem, adormece e sonha estar pleno, ao lado de seus “primeiros poucos amigos”, sorrindo e cantando – “não esperávamos por nada mas estávamos até satisfeitos”. “Jamais pensamos que poderíamos ficar tão velhos”, revela aquele que reteve a paisagem onírica na fotocopiadora do coração, após o que sopesará sua vida.
A terceira letra, sem embargo de perder a linearidade (como ousam perder as fabulações de quem dorme?), aponta ao cristão renascido que Bob Dylan seria dali a alguns anos, vez que ele narra encontrar, em sonho, Santo Agostinho, “vivo como eu ou você”. O santo procurava as almas que já haviam vendido-se, exortava-as a certa retidão, pois “agora não há mártir entre vocês para chamar de seu”, “mas sigam seu adequado caminho, e saibam que não estão sozinhos”. O autor de Confissões carregava consigo, no sonho de Dylan, sua fiery breath, respiração ardente – o santo por vezes foi representado com um coração em chamas a iluminar a verdade. Entretanto, o letrista confessa que estava entre aqueles que mataram Agostinho e, ao acordar bastante irado, abaixa a cabeça e chora copiosamente.
Assim, a segunda canção, isto é, o 115º sonho de Bob Dylan, como informa o título, ambienta-se em turbilhão de humor nonsense semelhante ao de Tarantula (1971), ficção composta de fragmentos de prosa e poesia, livro concomitantemente escrito pelo cancionista à época de Bringing It All Back Home e que reserva ao álbum íntima relação. Em Bob Dylan’s 115th Dream, pois, o poeta está a bordo do Mayflower, guiado pelo Capitão Arab (espécie jocosa de Capitão Ahab, de Moby Dick), quando avista terra ao horizonte. É o descobrimento onírico da América, que passa a ser criticamente exagerada nas particularidades abismais dos Estados Unidos, que ao cabo assustam o poeta. Indo embora, ele entrevê os navios de Cristóvão Colombo chegando à terra para redescobri-la e dirige-se ao navegante italiano – “apenas lhe disse: boa sorte!”.
Em artigo para a coluna musical de The Economist, Hazel Sheffield, sem maiores pretensões, rotula a última canção de “a Kublai Khan-like voyage in America”, “nonsensical story of discovery”. A comparação é sobremodo feliz. Coube a outro explorador italiano, Marco Polo, algumas décadas antes do périplo colombino, conhecer e registrar a China do imperador mongol Kublai Khan, neto de Genghis Khan, em todos os mais incríveis e grandiosos aspectos, capazes de embasbacar em definitivo a Europa.
Não finda aí, certamente, a felicidade da comparação, se é que deveras iniciou. O romântico inglês Samuel Taylor Coleridge, em um de seus poemas mais incensados, retrata a imensidão de um palácio de Kublai Khan. Ocorre que o poema, intitulado Kubla Khan, foi extraído justamente de um sonho do poeta, que dormiu após tomar um hipnótico por estar indisposto e de ler certo trecho de Purchas sobre o palácio em questão. Contudo, dormindo, intuiu uma série de visões e palavras que as manifestavam. Jorge Luis Borges, no ensaio O Sonho de Coleridge, anota que este “ao cabo de algumas horas despertou com a certeza de ter composto, ou recebido, um poema de uns trezentos versos. Recordava-os com singular clareza e pôde transcrever o fragmento que perdura em suas obras. Uma visita inesperada interrompeu-o e foi-lhe impossível, depois, recordar o restante.” A versão final de Coleridge tem cerca de 50 versos.
Terminando de exultar a visão do palácio de Kublai Khan, Coleridge diz que com a própria canção que escreveu poderia construí-lo — “O Palácio ao sol! As grutas de granizo!/ E ouvindo, iriam ver nesse momento,/ E ouvindo, proclamar ‘Atento! Atento!/ O olho que brilha, a cabeleira ao vento!/ Faz-lhe à volta três círculos no piso,/ E cerra os olhos com temor sagrado,/ Pois ele de maná foi saciado/ E bebeu do leite do Paraíso’.” A tradução veio de Alípio Correia de Franca Neto. Perspicaz é, à visão de tanta imensidão e riqueza, Samuel Taylor Coleridge crer que edificá-la em versos seria como saciar-se no mel e no leite de que diz Êxodo 3:8, que apenas jorram na Terra Prometida.
Mas atento ao versículo também esteve Bob Dylan, de proximidade à crença judaica bem conhecida, como demonstra ao maldizer o infame american dream (um sonho a mais?), o mesmo que critica acidamente em Bob Dylan’s 115th Dream, na canção Unbelievable (Under The Red Sky, 1990) — “disseram que era a terra do leite e do mel”, mas “agora dizem que é a terra do dinheiro”, ao passo que “é inacreditável que se possa ficar rico assim tão cedo”. As traduções improvisadas fazem as letras perderem certo impacto, mas não prejudicam a percepção de que, a partir do mel e do leite sagrados, muitos palácios de ouro, os sonhados e os feitos apenas de sonhos, e há diferença, são edificados.
Entretanto, convém retornar a Coleridge e ao ensaio de Jorge Luis Borges. Ao dizer que o artista conceber em sonho sua obra não é exatamente incomum, o argentino chama a atenção para o caso do inglês e o palácio de Kublai Khan, pois “o poeta sonhou em 1797 e publicou seu relato em 1816. Vinte anos depois apareceu em Paris a primeira versão ocidental de uma dessas histórias universais em que a literatura persa é tão rica, o ‘Compêndio de histórias de Rashid el-Din’, que data do século XIV. Numa página se lê: ‘A leste de Shang-tu, Kublai Khan ergueu um palácio, segundo um plano que havia visto num sonho e que guardava na memória.’ Quem escreveu isto foi o vizir de Ghazan Mahmud, que descendia de Kublai.” Ora, incomum mesmo, ou melhor, imprecedente, é isso.
Borges, que pertence ao grupo dos que rechaçam o sobrenatural, conforme explicita, jamais ofereceria, no entanto, hipótese de interpretação pouco encantadora. “O primeiro sonho agregou à realidade um palácio; o segundo, que se produziu cinco séculos depois, um poema (ou um princípio de poema) sugerido pelo palácio; a similitude de sonhos deixa entrever um plano; o período enorme revela um executor sobre-humano. Indagar o propósito desse ser imortal ou longevo seria talvez não menos atrevido que inútil, porém é lícito suspeitar que ele não tenha logrado êxito.”
“Ao primeiro sonhador foi oferecida na noite a visão do palácio, e ele o construiu; ao segundo, que não sabia do sonho do anterior, o poema sobre o palácio. Se não falhar o esquema, algum leitor de ‘Kubla Khan’ sonhará, numa noite da qual nos separam os séculos, um mármore ou uma música. Esse homem não saberá que os outros dois sonharam; talvez a série de sonhos não tenha fim, talvez a chave esteja no último.”
Bom, sem embargo de, ao longo das décadas subsequentes de sua carreira, Bob Dylan ter escrito e gravado mais canções acerca da temática onírica, a mencionar e discorrer a respeito de diversos sonhos, há uma que parece extrair o título da citação anterior de Borges — Series Of Dreams (The Bootleg Series Vols. 1-3,1991). Pode ser atrevido e inútil supor a continuidade do fenômeno metalinguístico e onírico do palácio de Kublai Khan em uma visão decadente e crítica da América, advinda do gênio de Dylan, mas é lícito. E talvez a série de sonhos não tenha fim.