[Coautor: Weiny César Freitas Pinto] [1]
O tema da tolerância surgiu atrelado ao conceito de liberdade religiosa e, com o tempo, foi tomando um sentido mais geral, abrangendo outros aspectos. Neste ensaio, vamos nos ater à discussão da tolerância no âmbito religioso, por entender que esta é uma questão que ainda necessita ser pensada nos dias de hoje. Usaremos alguns elementos da Carta a Respeito da Tolerância (1689/1983), do filósofo inglês John Locke (1632-1704), e fatos e acontecimentos recentes, que indicam a presença de intolerância religiosa, especificamente contra muçulmanos.
A carta de Locke foi escrita no contexto da contrarreforma, em que havia forte clima de tensão entre cristãos católicos e protestantes, e a liberdade de opinião e religião era violada por conta de divergências em assuntos religiosos e civis. Em seu texto, o filósofo defende a tolerância entre as religiões como algo imprescindível, e as questões por ele abordadas são ainda pertinentes. Porém, apesar de tratar o assunto, Locke não entendia a tolerância em sua totalidade, excluindo ateus de sua abrangência, pois, segundo ele, “[…] os que negam a existência de Deus não devem ser de modo algum tolerados […]” (LOCKE, 1983, p. 23). Ao admitir a intolerância contra os ateus, Locke, infelizmente, limita sua noção de tolerância. Ainda hoje, como em sua época, grupos continuam sendo excluídos, como no caso dos islamitas, que sofrem restrições para expressar com liberdade sua fé e cultura. Portanto, a discussão a respeito da tolerância nos dias atuais também carece de uma ampliação desse conceito.
Islamofobia
Uma onda de atentados terroristas cometidos por extremistas islâmicos atingiu o Ocidente nas últimas décadas, gerando ódio e preconceito contra muçulmanos e pessoas vindas de países de maioria muçulmana. A repulsa a esses povos, conhecida como islamofobia, pautou políticas públicas nos Estados Unidos e na Europa.
As políticas anti-Islã têm ganhado força com a recente escalada da extrema-direita no mundo e com a crise de refugiados na Europa. Em 2018, por exemplo, a Dinamarca estudava rejeitar a concessão da cidadania dinamarquesa aos imigrantes que não retribuíssem o aperto de mão das autoridades durante as solenidades do processo de naturalização (BBC NEWS BRASIL, 2018). Esta proposta atingiria diretamente os muçulmanos, que, por motivos religiosos, preferem o gesto de colocar a mão sobre o peito, como sinal de reverência, em vez do habitual aperto de mãos. Além dessa regra, dezenas de outros regimentos foram aprovados no país, entre 2015 e 2018, como a proibição do uso de véu integral islâmico em espaços públicos (BBC NEWS BRASIL, 2018). Esta proibição já havia sido adotada por outros países da Europa, como França, Holanda e Bélgica.
Essas medidas foram adotadas sob o pretexto de assimilar os imigrantes à cultura dinamarquesa, mas ferem os direitos de expressão de identidade e de crença religiosas destes. Uma sociedade livre não pode coagir alguém a mudar sua fé, diria Locke, e nós acrescentaríamos: o Estado não tem o direito de forçar alguém a abandonar sua cultura, pois:
Um mal mais secreto, apesar de mais perigoso para a comunidade, verifica-se quando os homens se atribuem a si mesmos, e aos de sua própria seita, certa prerrogativa peculiar, contrária ao direito civil, mas disfarçada por palavras capciosas designadas a deitar poeira nos olhos das pessoas (LOCKE, 1983, p. 23).
Segundo Abbagnano (2007, p. 961), a tolerância é uma norma ou princípio de liberdade religiosa. Porém, o país cujos ideais inspiraram as sociedades a tornarem-se livres, e carrega “liberdade” como lema nacional, também sofre do mal da intolerância religiosa. A França, que tanto se orgulha de sua famosa tríade (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), também ultrapassa limites, como em algumas sátiras do jornal Charlie Hebdo, que excedem a liberdade de expressão e atingem o discurso de ódio. Em uma das charges, por exemplo, o jornal retrata o menino Aylan Kurdi, refugiado sírio fotografado morto na praia de Bodrum, na Turquia, como potencial assediador (G1, 2016). A charge, de extremo mau gosto, foi apontada por pesquisadores e estudiosos como potencialmente islamofóbica (GUIA DO ESTUDANTE, 2020).
Em ocasião recente, depois de um professor de História ser assassinado por um jovem jihadista radicalizado, por mostrar em sua aula uma caricatura do profeta Maomé, o presidente francês Emmanuel Macron se pronunciou defendendo a liberdade de expressão, afirmando que a França não renunciaria às charges. “Liberdade de expressão” que não foi permitida aos mais de 200 locais que sediavam atividades religiosas e culturais islâmicas, ao serem imediatamente interditadas (O GLOBO, 2020).
Macron não é de extrema-direita, mas certamente suas ações contribuem para o discurso extremista anti-Islã, contrariando a declaração da Unesco, que afirma:
A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais dos outros. Em nenhum caso a tolerância pode ser invocada para justificar lesões a esses valores fundamentais. A tolerância deve ser praticada pelos indivíduos, pelos grupos e pelo Estado (UNESCO, 1997, p. 11).
É óbvio que repudiamos completamente qualquer atentado terrorista. Acreditamos que nada, absolutamente nada, justifica atos brutais, como os ocorridos na França, contra a redação do Charlie Hebdo e contra o professor de História. Ataques terroristas de nenhuma natureza devem ser tolerados, mas as respostas a esses ataques não podem significar a punição de toda uma cultura ou religião, como no caso de tomar todo islamita como potencial ameaça, por exemplo.
Uma outra nação que se orgulha de sua liberdade e se vende como a maior democracia do mundo, mas que também tem ações incompatíveis com tais princípios, os Estados Unidos elegeram em 2016 um presidente que usou forte retórica anti-Islã em sua campanha. O presidente Donald Trump proibiu a entrada de cidadãos vindos de alguns países de maioria muçulmana, medida considerada legal pela Suprema Corte americana (VEJA, 2018). Segundo a Declaração de Princípios sobre a Tolerância (1995/1997, pp. 12-13), é de responsabilidade do Estado reforçar a legislação dos direitos humanos, mas a decisão de Trump foi amparada por aqueles que tinham o poder de vetá-la.
Existem mais de 1 bilhão de muçulmanos no mundo (EXAME, 2017) e, destes, apenas uma pequena parcela é extremista. Porém, as medidas tomadas para evitar o terrorismo religioso atingem toda a comunidade muçulmana. Os muçulmanos são impedidos de manifestar sua fé e cultura livremente, e o ódio a eles direcionado pode inclusive insuflar radicais. Há algo de muito equivocado nas medidas de antiterrorismo religioso. Ainda hoje, como nos pouco mais de três séculos atrás, quando Locke escreveu sua Carta, faz-se necessário discutir a respeito da tolerância religiosa. A intolerância permanece muito presente em nossa cultura, devendo ser questionada e combatida, principalmente nos países democráticos, que pregam com tanto fervor a liberdade. Quem sabe não possam eles dar o exemplo e cumprirem seu dever de Estado de coibir ações que violem o direito de identidade e de religião, assegurados pelos direitos humanos.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Tolerância. In: ABBAGNANO, Nicola.Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti.5 ed. rev. e ampli. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 961.
CHARGE do Charlie Hebdo sobre garoto sírio afogado causa revolta. G1, 14 de jul. de 2016. Mundo. Disponível em: <http://glo.bo/1TYFM4e> Acesso em: 10 de dez. de 2020.
ILHÉU, Taís. Por que a França é o país europeu que mais sofre com ataques terroristas. Guia do estudante, 4 de nov. de 2020. Disponível em: <https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/por-que-a-franca-e-o-pais-europeu-que-mais-sofre-com-ataques-terroristas/> Acesso em: 23 de nov. de 2020.
LOCKE, John. Carta a respeito da tolerância. Tradução de Anoar Aiex. Coleção Os pensadores, vol. XVIII. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 3 – 39.
MACRON declara guerra ao ‘separatismo islâmico’, e é criticado por líder de associação muçulmana. O Globo, 2 de out. de 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/macron-declara-guerra-ao-separatismo-islamico-e-criticado-por-lider-de-associacao-muculmana-24673250#newsletterLink Acesso em: 10 de nov. de 2020.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO CIÊNCIA E CULTURA. Declaração sobre os princípios de tolerância. In: Anais Conferência Geral da UNESCO, 28., 1995, Paris. São Paulo: UNESCO, 1997. p. 11-13.
RUIC, Gabriela. Os números do islamismo: a religião que mais cresce no mundo. Exame, 6 de mar. de 2017. Mundo. Disponível em: <https://exame.com/mundo/os-numeros-do-islamismo-a-religiao-que-mais-cresce-no-mundo/> Acesso em: 24 de nov. de 2020.
SUPREMA Corte dos EUA: veto a cidadãos de países muçulmanos é legal. Veja, São Paulo, 26 de jun. de 2018. Mundo. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/mundo/suprema-corte-dos-eua-veto-a-cidadaos-paises-muculmanos-e-legal/> Acesso em: 24 de nov. de 2020. WALLIN, Claudia. Por que Dinamarca discute negar cidadania a quem recusar aperto de mão.BBC News Brasil, Estocolmo, 28 de set. de 2018. Disponível em:<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45664501> Acesso em: 23 de nov. de 2020
[1] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O texto é o terceiro da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.