Oscar Wilde disse certa vez que os Estados Unidos são grandes adoradores de heróis e sempre os escolhem entre os criminosos. O escritor Dashiell Hammett – que morreu há 60 anos, no dia 10 de janeiro de 1961, aos 67 anos de idade – criou um tipo de herói que foi tão popular no imaginário norte-americano quanto o caubói dos filmes de faroeste: o private eye, o detetive particular durão celebrizado nas produções noir das décadas de 1930 a 1950, que age dentro de um código de honra próprio e despreza a autoridade, transpondo com cínica desenvoltura a fronteira entre o legal e o ilegal.
Hammett revolucionou a literatura policial nos anos 1920, fundando uma nova estética que injetava doses brutais de realidade nas até então fantasiosas histórias de detetive consumidas com voracidade pelo público norte-americano. Influenciados pelos seus colegas ingleses, os autores do gênero nos Estados Unidos criavam tramas nos moldes das protagonizadas por Sherlock Holmes, nas quais um investigador dotado de uma inteligência fora do comum, circulando por ambientes refinados e assépticos, solucionava os crimes mais intrincados, nos quais a violência era apenas sugerida.
Nas páginas da revista de mistério Black Mask, Dashiell Hammett, aproveitando-se da própria experiência como detetive particular, colocou como protagonista de suas histórias um investigador muito mais realista, um tipo durão e rude que age sobretudo por instinto, guiado antes pela experiência no mundo da marginalidade, e não por um intelecto superior, típico dos detetives das aventuras inglesas. É como se o caubói das histórias de faroeste de repente vestisse um terno barato e passasse a circular pelos ambientes soturnos das metrópoles americanas.
O estilo criado por Hammett foi batizado pela crítica de hard-boiled – um termo popularizado durante a Primeira Guerra Mundial para designar os militares linha-dura que, nos campos de treinamento, transformavam os jovens aspirantes a soldado em máquinas de guerra. Na literatura, hard-boiled se traduz numa linguagem crua e direta, sem adjetivações nem sentimentalismos, tendo o sexo e a violência como ingredientes principais.
Sam Spade
Nos poucos livros e contos que escreveu, Dashiell Hammett deu vida a personagens célebres, que se transformaram em verdadeiros paradigmas do romance policial, precedidos por uma legião de imitadores. Com Sam Spade, contudo, o escritor criou um mito. O cínico private eye de O Falcão Maltês (1929), imortalizado nas telas por Humphrey Bogart em 1941 no filme de John Huston, virou o protótipo por excelência do detetive de métodos pouco ortodoxos e que vive em conflito permanente com a polícia.
De caráter ambíguo, Spade tem uma moral própria. No seu código de ética, não há nada de mais em trair seu sócio, indo para a cama com a mulher dele. Porém, no momento em que o parceiro é morto, Spade se transforma em um justiceiro na caça ao assassino, embora também seja movido pelo interesse de se apoderar de uma valiosa estatueta em formato de falcão, toda de ouro e incrustrada de pedras preciosas.
Antes de Sam Spade, outro personagem de Hammett já tinha caído no gosto popular – um baixinho e brutal detetive de meia-idade que não é nomeado nas histórias em que aparece, mas que acabou recebendo o apelido de Continental Op, em referência à agência para a qual trabalhava. Pouco econômico nos socos que distribui em busca da solução dos crimes que tenta desvendar, Continental Op age desprezando as leis e as convenções, mas é incorruptível. Essa característica, no entanto, conforme afirmava o próprio Hammett, tinha muito mais a ver com a paixão de Op pela profissão do que com um caráter virtuoso.
Com Ned Beaumont, em A Chave de Vidro (1931), Hammett criou um personagem que é quase um autorretrato de si mesmo – íntegro, desamparado, leal e tuberculoso (leia texto sobre a vida do autor mais abaixo). Conforme uma das biógrafas de Hammett, Diane Johnson (no livro Dashiell Hammett – Uma Vida), diferentemente de Sam Spade e Continental Op, “Ned Beaumont ainda procura a importância dos valores, o mérito da autoridade”.
Segundo o crítico Max Allan Collins, Hammett não só lançou as bases do que seria o típico romance policial noir, mas definiu seus subgêneros. Em O Falcão Maltês, Hammett estabeleceu os elementos mais tradicionais – estão lá o investigador que age por conta própria, auxiliado apenas pela eficiente e apaixonada secretária; o policial amigo e o tira adversário; a cliente sexy de passado nebuloso, e uma fauna de bizarros marginais.
Já o ultraviolento Safra Vermelha (1929) influenciou vários autores, entre os quais o mais célebre é Mickey Spillane, criador do sanguinário Mike Hammer. Estranha Maldição, outro romance de 1929, prefigurou os complexos dramas policiais criados por Raymond Chandler e Ross MacDonald, cujos heróis – Philip Marlowe e Lew Archer, respectivamente – estão volta e meia envoltos com histórias escabrosas envolvendo famílias ricas e influentes. Por fim, a fábula sobre corrupção política de A Chave de Vidro definiu o padrão de uma infinidade de novelas de mistério, de autores que vão de John MacDonald a Elmore Leonard.
Sobre a linguagem pouco rebuscada empregada nas histórias de Hammett, a sua simplicidade não era de forma alguma sinal de desleixo, mas resultado de um trabalho rigoroso, de artesania, para extrair o essencial. “A linguagem dos homens nas ruas raras vezes é clara ou simples. […] Ela não é só excessivamente complicada e repetitiva como quase sem finalidade em sua falta de coerência”, afirmava o autor. “Simplicidade e clareza não podem ser obtidas do homem das ruas. Representam as proezas literárias mais indefiníveis e difíceis, e é necessário um alto grau de habilidade ao escritor que desejar atingi-las.”
Autor foi perseguido pelo macartismo
Dashiell Hammett nasceu a 27 de maio de 1894, em St. Mary’s County, nos Estados Unidos. Aos 13 anos, largou a escola para ganhar a vida numa série de empregos mal-remunerados até conquistar um posto como detetive particular na agência Pinkerton. Serviu como soldado na Primeira Guerra Mundial, quando contraiu tuberculose, doença que o atormentou a vida inteira. Ainda no hospital das Forças Armadas norte-americanas, conheceu sua primeira mulher, a enfermeira Josephine, com quem teve duas filhas e de quem se divorciou em 1927.
De volta da guerra e aproveitando sua experiência como detetive, Hammett passou a contribuir para a revista de mistérios Black Mask. Suas cruas histórias protagonizadas pelo detetive Continental Op fizeram um enorme sucesso. Em 1929, caiu definitivamente nas graças do público com a publicação do livro O Falcão Maltês.
Rico com a vendagem e a adaptação de seus livros para o cinema, Dashiell Hammett esbanjava sua fortuna com festas e amantes. Passava dias embriagado. Cada vez mais atingido pela tuberculose e enfraquecido pelo alcoolismo, passou a ter dificuldade em cumprir prazos com seus editores.
Envolvido com movimentos de esquerda, Hammett foi perseguido pela caça aos comunistas capitaneada pelo senador Joseph McCarthy e acabou sendo condenado à prisão por seis meses. Antes disso, mesmo debilitado pela doença, apresentou-se voluntariamente para servir durante a Segunda Guerra Mundial, sendo indicado para um posto no Alasca, onde seu trabalho era redigir notícias para os soldados.
Nos últimos anos de sua vida, instalado num sítio nos arredores de Nova York, dedicou-se a ensinar técnicas de redação para jovens escritores. A escritora Lillian Hellman, sua companheira por mais de 30 anos, esteve ao lado de Hammett até sua morte, em 10 de janeiro de 1961, e escreveu um tocante relato sobre a relação entre eles no livro Pentimento.
Receita de detetive
Muito do realismo das histórias policiais de Dashiell Hammett deve-se, como se disse, à experiência do autor como detetive, nos anos em que ele trabalhou na agência Pinkerton. Hammett concordava que seria “tolo” insistir que todo autor de romances policiais deveria ter sido investigador, mas deplorava o fato de que a maioria dos escritores do gênero que eram seus contemporâneos não se dessem sequer ao trabalho de “conversar com um policial de vez em quando” – daí a razão de julgar uma boa parte das histórias de detetive escritas pelas colegas tão inverossímil. Para quem quisesse se aventurar como autor do gênero, Hammett recomendava observar alguns detalhes fundamentais do universo policial ao compor uma história, entre os quais os seguintes:
- “quando uma bala de Colt. 45, ou de qualquer arma de fogo que tenha aproximadamente o mesmo calibre e potência, atinge alguém, mesmo que não seja num ponto fatal, geralmente derruba a pessoa”;
- “um ferimento de faca ou bala é sentido, a princípio, simplesmente como uma pancada ou um empurrão. Um pouquinho depois é que se começa a sentir um ardor ou qualquer sensação dolorosa”;
- “as pupilas da maioria dos viciados são aparentemente normais”;
- “é impossível ver alguma coisa com o clarão de uma arma comum, embora seja fácil imaginar que se viu algo”;
- “não é comum que um detetive treinado que esteja espreitando alguém pule de porta em porta ou se esconda atrás de árvores ou postes. Ele sabe que não há mal nenhum se o espreitado o vir de vez em quando”.
Fonte: Dashiell Hammett – Uma Vida, de Diane Johnson
muito bom
a data de nascimento do autor está incorreta
\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\beijos
Obrigada! Vamos corrigir a informação.