[Coautores: Carlos Augusto Damasceno [1] e Weiny Cesar Freitas Pintor[2]]
Ao longo da evolução humana, principalmente no aspecto sociocultural, surgiram necessidades, graças às quais, por meio da racionalidade e da emoção, nos diferenciamos do animal. Dentre essas necessidades, uma de caráter subjetivo faz o ser humano buscar o sentido da sua vida e transformar um mundo que lhe parece caótico em algo mais organizado e previsível. Quer dizer, o homem sempre busca por uma vida de certezas, ao mesmo tempo em que deseja uma vida prazerosa e sem sofrimento, ou, por que não dizer, uma existência feliz.
Mas como se portar diante da relação entre prazer e sofrimento? Viver sem sofrimento já seria suficiente para o ser humano ser feliz? É possível excluir totalmente o sofrimento e partir, apenas, para a busca do prazer em sua plenitude?
Muitos pensadores apresentaram propostas para definir como o ser humano deveria regular essa relação com o objetivo final de ser feliz. Dentre estes, o filósofo Epicuro apresentou a tese de que era possível alcançarmos a felicidade utilizando a prudência: “De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia […]” (EPICURO, 2002, p. 45)[3].
Concordamos com o posicionamento do filósofo e entendemos, talvez diferentemente da interpretação geral, que a postura de Epicuro não é bem compreendida se simplesmente a associamos às correntes filosóficas hedonista e estoicista.
Entre tantos temas que aborda, a filosofia também estuda a felicidade e reflete sobre o comportamento ideal do homem para atingi-la. Nesse sentido, o filósofo materialista Epicuro (341 a.C.-270 a.C.), ao escrever sua famosa Carta sobre a Felicidade, foi um dos pensadores a propor determinado comportamento ético para uma vida feliz. Por meio dela, de forma simples e direta, o filósofo antigo discorre sobre a felicidade e lembra a Meneceu, seu amigo a quem a carta se destina, que o homem pode ser feliz, independentemente de sua idade, desde que, auxiliado pela filosofia, aprenda a praticar as coisas que trazem a felicidade.
O filósofo confirma a crença nos deuses e que eles estão associados à imortalidade e à felicidade, mas que, erroneamente, o homem tem deles a imagem de serem entes capazes de nos causar malefícios ou benefícios em vida. Epicuro não é adepto à ideia de que os deuses controlam nossa vida, temos o livre-arbítrio para nossas decisões e, quanto mais a prática da filosofia estiver presente em nossas vidas, melhores serão nossas decisões.
Quanto à morte, não há razão para nos afligirmos, pois ela é certa e representa a ausência de sensações que abrangem todo o bem e todo o mal, dirá Epicuro. Portanto, a vida que vale é a do tempo presente, e ela não pode ser um fardo por fazermos projeções da morte vindoura.
O importante para Epicuro é o conhecimento seguro dos desejos, alguns deles classificados como necessários, por exemplo, beber quando se está com sede, comer quando se está com fome ou repousar quando se está cansado é fundamental para a felicidade, para o bem-estar do corpo e para a própria vida, em geral. Ter conhecimento deles nos leva a direcionar nossas escolhas, a definir nossas recusas para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito.
Note-se aqui a importância dada à questão do bem-estar físico, a aponia[4], que não tem relação com o pensamento hedonista, para o qual o prazer é um bem supremo, e menos ainda com o estoicismo, que apenas se conforma diante da dor.
Quanto à paz de espírito, ao atingi-la, o homem deixa de ter a necessidade de buscar algo que lhe falta, buscará apenas o bem para a alma e o corpo e, consequentemente, ficará satisfeito. Trata-se da ataraxia, o estágio de não perturbação da alma[5]. Epicuro não separa corpo e alma, os dois formam uma unidade e, por isso, o filósofo exalta ao mesmo tempo a importância da saúde do corpo e da tranquilidade do espírito.
Para Epicuro, o prazer é inerente ao ser humano e o seu bem primeiro. Por meio dele, fazemos as nossas escolhas, estabelecemos nossas recusas, mas, mesmo sendo inato, por vezes o evitamos ou até mesmo optamos pelo sofrimento. Cabe a cada um avaliar o grau de sofrimento e prazer que deseja, de acordo com os benefícios e danos que podem ser gerados, portanto, se trata aqui da famosa relação custo/benefício, fazendo-nos lembrar de que o sofrimento é fonte, também, de aprendizado.
Dessa relação abstrai-se que, se a busca da satisfação dos desejos gera sofrimento, então, tornar-se independente desses desejos – controlá-los por meio de seu conhecimento – causa o bem, quer dizer, o controle racional da satisfação é fundamental para uma vida feliz. Desse modo, apreende-se a proposta de Epicuro para uma vida simples, que torne possível o controle dos desejos e que, consequentemente, leve a uma vida feliz.
E quanto ao fim último do prazer? O filósofo deixa claro que não se refere ao gozo dos sentidos, como propõem os hedonistas, mas à ausência de sofrimentos físicos e à não perturbação do espírito. O prazer só é alcançado pela prudência que, como vimos, é o bem maior e superior à própria filosofia. Com efeito, ainda sobre prudência, Epicuro (2002, p. 45) insiste: “[…] é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade”. Em uma palavra, virtude e felicidade são inseparáveis.
Epicuro encerra sua Carta demonstrando a grande importância da filosofia para a felicidade e vice-versa. Para ele, o sábio é feliz porque compreende que os deuses não são capazes de controlar a nossa vida, os eventos acontecem por acaso, por necessidade ou por nossa vontade. Não controlamos a necessidade e nem o acaso, mas controlamos nossas vontades.
A felicidade sempre será importante para o ser humano e a filosofia é uma das áreas do conhecimento que busca entendê-la. A proposta de uma vida feliz, formulada por Epicuro, não fica no campo metafísico, ela deve ser praticada concretamente em qualquer fase da vida.
[…] Epicuro deu à filosofia uma finalidade mais prática: ela se converteu no remédio para os males do corpo e da alma, portanto, atividade curativa e libertadora, concepção que tomou de empréstimo da medicina. Ao se converter no remédio para os males que afligiam o homem, a filosofia se deslocou da reflexão teórica para o hábito de viver enquanto único meio para alcançar o bem e a felicidade, possíveis apenas nesta vida. (BORDIM; MELO, 2009, p. 4).
Apesar do nosso livre-arbítrio e da nossa subjetividade, Epicuro sugere que todos nós podemos ser felizes se ficarmos em uma posição mediana da escala de prazer. Essa posição é confortável quando racionalmente queremos ficar nela por meio da prudência, evitando, assim, as armadilhas de um sofrimento desnecessário em busca de algo que nos falta. Algo, inclusive, capaz de nos dominar e nos causar tanto mal como, por exemplo, a ansiedade e a depressão, notoriamente tão presentes em nosso mundo nos dias de hoje[6].
Somos adeptos da proposta de Epicuro, que afirma que em qualquer fase da vida é possível fazer uso da filosofia para ser feliz, mas devemos reconhecer que para os mais jovens as apostas são sempre mais altas, as ofertas dos prazeres são maiores e a prudência é menor. Em geral, ao longo da vida, a tendência se inverte, arrisca-se menos e se torna mais prudente. De qualquer forma, não importa a idade, o fato de ser prudente e de buscar agir com sabedoria frente às situações e problemas práticos da vida não limita nossa possibilidade de ser feliz, ao contrário, nos auxilia nesta trajetória rumo à felicidade porque nos fornece melhores critérios para fazermos nossas apostas neste grande jogo que é a vida, pois, afinal de contas, ao menos parte do que acontece em nossas vidas é devido a nós mesmos.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução coordenada e revista por Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BORDIN, Reginaldo Aliçandro; MELO, José Joaquim Pereira. Em Epicuro, a filosofia é a medicina da alma, In: Jornada de Estudos Antigos e Medievais, 8., 2010, Maringá. Anais… Disponível em <http://www.ppe.uem.br/jeam/anais/2009/pdf/10.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2020.
DEPRESSÃO cresce no mundo, segundo OMS ; Brasil tem maior prevalência da América Latina. G1. Rio de Janeiro, 23 fev. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/noticia/depressao-cresce-no-mundo-segundo-oms-brasil-tem-maior-prevalencia-da-america-latina.ghtml>. Acesso em: 7 dez. 2020. Acesso em : 7. dez. 2020.
EPICURO. Carta sobre a felicidade (A Meneceu). Tradução e apresentação de Álvaro Lorencine e Enzo Del Carratore: São Paulo: Editora UNESP, 2002. Título original: Lettera sulla felicità.
TUCHLINSKI, Camila. Depressão será a doença mental mais incapacitante do mundo até 2020. O Estado de São Paulo, São Paulo, 10 out. 2018. Caderno Notícias/Bem-estar. Disponível em: <https://emais.estadao.com.br/noticias/bem-estar,depressao-sera-a-doenca-mental-mais-incapacitantes-do-mundo-ate-2020,70002542030>. Acesso em: 7 dez. 2020.
[1] Professor concursado de filosofia da Rede Pública Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: cadvog@gmail.com
[2] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
[3] Em sentido geral, a « prudência » está associada ao conceito de sabedoria. Conforme Abbagnano (2007, p. 863), a superioridade atribuída à prudência ou à sapiência demonstra a interpretação fundamental que se tem de filosofia: o predomínio da segunda é típico do conceito de filosofia como contemplação pura; o primado concedido à prudência expressa o conceito de filosofia como guia do homem no mundo. A sabedoria era conceitualmente de contemplação ou ação, mas, após Aristóteles, prevaleceu a sabedoria prática, que continuou com Epicuro e os estoicos. Com São Tomás de Aquino, a sabedoria prática passa a ser definida como prudência.
[4] Segundo Abbagnano (2007, p.74), aponia é a ausência de dor como prazer estável e, portanto, eticamente aceitável, na ética de Epicuro.
[5] Conforme Abbagnano (2007, p.87): ataraxia é o termo usado primeiramente por Demócrito, depois pelos epicuristas e pelos estoicos, para designar o ideal da imperturbabilidade ou da serenidade da alma, em decorrência do domínio sobre as paixões ou da extirpação destas.
[6] Cf. Tuchlinski (2018) e Depressão (2017).
O texto é o quarto da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.