[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Nautilus
Um novo começo. Câmera inverno na
lâmina da manhã, esfinges nos costões, o Sol,
credencial do céu. O permanente
monólogo do vento. Dia e noite sendo
abstrações. Tempo,
redoma de vidro, triunfante.
A vegetação
das dunas a tudo resistiu.
Riso de poente na areia creme,
duas borboletas agradecem.
Planos simultâneos: matiz
de verde e azul em alta
definição. Rajada de pensar
das plantas, rente esperanto,
e um céu mudo de nuvens.
O azul, digital, conversa
com o eloquente vento sul.
Mas o branco, de forma alguma, se alumbra
de alguma forma,
Nossa Senhora das Dunas. Você
não olha indiferente a tudo isso.
Ao contrário, você desaparece
dando lugar ao labirinto desejo, flores foscas,
ou barco distante.
A varanda é um convés
onde móbiles de bambu ressonam.
Alguém se esqueceu de desligar
a máquina do mar.
Estúdio realidade (2013)
***
[2]
Eclesiastes
Você bate na mesma tecla, repete
aquele surrado clichê: não há nada
de novo sob o sol. Mas quem garante
que isto é real, não um conto de fada?
Nem tudo tem sido, como se tem ouvido,
a mesma coisa desde o começo
dos tempos. Não estou convencido.
Se há algo que não muda, desconheço.
Nem sempre o vento é sul, nem todo rio
segue pro mar. O que está acontecendo agora,
por exemplo, não era pra acontecer. Ora,
você nunca viu este filme. Fica frio:
Não há nada de novo sob o sol
só para o sol, que é sempre o mesmo.
Esta é a verdade toda, não se dissol-
ve numa rima ou pensamento a esmo.
Aqui embaixo, tudo muda, todo dia:
a moda, o medo, e mesmo a luz do sol
passa dias assim, arredia, e me arrepia
pensar que é diferente. Olha só:
Pare de ficar repetindo isso. Acorda. Mete
em sua cabeça de uma vez por todas:
nenhum sol se põe a oeste. E este
poema, eu sei, nem ele existe. É foda.
Experiências extraordinárias (2015)
[3]
O futuro mandou lembranças
O dia, velho cigano, se encerra,
levando seu ouro para a China.
A noite está fresca na retina.
Quem vai herdar nossa miséria?
A vida uma comédia, só que séria:
Praias tão vazias, páginas tão pálidas
de tanto mistério, de tanto serem lidas.
Quem vai herdar nossa miséria?
Amigos distantes, estas linhas aéreas,
Instantes que foram isso, nada, espuma,
vislumbres, madrugada, alguma lua.
Quem vai herdar nossa miséria?
Minha dor mora onde outros tiram férias.
O passado é um rio que não regressa
e o presente, essa falsa promessa:
Quem vai herdar nossa miséria?
Uma sílaba no ar ainda reverbera.
Dunas mudas, dorso negro de montanhas,
o céu, lápide ardósia nessa quase manhã.
Quem vai herdar nossa miséria?
O enigma das ondas (2020)
[4]
Breve história da solidão
No escuro de uma caverna,
nas paredes de Pompeia,
na superfície de um papiro,
na solidão de uma tela,
num grafite imprevisto
ou na imensidão sidérea,
esses escritos, frágeis rabiscos,
querem dizer apenas isto:
existo.
O enigma das ondas (2020)
[5]
Oniros
Em algum lugar ao norte de Medúsia,
onde não há música, exilada inocência
na sólida paisagem que a visão
hipnotiza sob a ponte: a farsa
de nosso futuro. Com olhos lacrimejantes,
trovões trincam o céu de nossos afetos,
tremem a catedral de sentidos. Um corte.
Fomos contratados para um trabalho
insondável: instalar estas cercas elétricas.
Agora conversamos entre dispositivos
em algum resort de Bornéu ou da Normandia
com a senha Alberta a tiracolo.
O estranho veterano se detém
diante da vitrine
de uma praia de diamantes.
Há uma nave no céu.
Ecos de explosões na Galeria Steinway,
aroma de algas vermelhas e tóxicas,
câmeras de monitoramento, sabotagem.
Marionetes macabras sorriem enquanto afundam
na areia movediça dos dias.
Há um franchising de sonho aberto 24 horas
e uma chance apenas de tocar e tatear
a Terra para sempre prometida,
antes que a paisagem se estilhace
e vire um hotel feito tão só de ruínas
e habitado só por anjos.
O enigma das ondas (2020)
Perfil
Rodrigo Garcia Lopes nasceu em Londrina (PR) em 2 de outubro de 1965. É poeta, romancista, tradutor e compositor. Publicou Solarium (1994), visibilia (1996), Polivox (2002), Nômada (2004), Estúdio realidade (2013), Experiências extraordinárias (2015) e O enigma das ondas (2020). É autor do livro de entrevistas Vozes & visões: panorama da arte e cultura norte-americanas hoje (1996) e do ensaio Roteiro literário – Paulo Leminski (2018). Como tradutor, publicou Sylvia Plath: poemas (1990) e Iluminuras: gravuras coloridas, de Arthur Rimbaud (1994), ambos em parceria com Maurício Arruda Mendonça; Mindscapes: poemas de Laura Riding e O navegante (The seafarer, do anônimo anglo-saxão, 2004); Leaves of grass / Folhas de relva: a primeira edição – 1855, de Walt Whitman (2005); Ariel, de Sylvia Plath (com Cristina Macedo, 2007); Epigramas, de Marco Valério Marcial (2017). Em 2001, seu poema “Stanzas in Meditation” foi publicado em Os cem melhores poemas brasileiros do século, organizado por Italo Moriconi. De 2002 a 2014 foi um dos editores da revista Coyote. Sua obra está representada em várias antologias de poesia brasileira contemporânea, no Brasil e no exterior. Foi professor da Universidade Estadual de Londrina, da Fundação Federal de Rio Grande e, de 2007 a 2009, do Departamento de Línguas Românicas da Universidade da Carolina do Norte. Em 2012, foi selecionado para o Programa de Escritores Internacionais da Universidade de Iowa (Iowa City, EUA). Seu romance policial-histórico O Trovador foi um dos sete finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura 2015, na categoria Melhor Livro do Ano – Autor Estreante Mais de 40 Anos. Em 2019, Roteiro literário – Paulo Leminski foi um dos três vencedores do Prêmio Literário da Biblioteca Nacional na categoria Ensaio Literário. Tem dois discos de composições autorais: Polivox (2001) e Canções do Estúdio Realidade (2013).