Deleuze e Guattari acabaram se rendendo afinal. Renderam-se a Freud. O buraco é mais embaixo. Não é assim de uma penada e com grande estardalhaço que se pode liquidar o Édipo. Para ficar num dos autores contemporâneos e pós-freudianos, Juan-David Nasio, o Édipo continua sendo incontornável, seja como lenda, mito, história, sonho freudiano, complexo, discurso, teatro, seja como máquina, não importa. Pulsões sexuais estão envolvidas.
“O Édipo de que vou falar é uma lenda que explica a origem de nossa identidade sexual de homem e mulher e, além disso, a origem de nossos sofrimentos neuróticos. Essa lenda envolve todas as crianças, vivam em uma família clássica, monoparental, recomposta ou, ainda, cresçam no seio de um casal homossexual, ou até mesmo, sejam crianças abandonadas, órfãos e adotadas pela sociedade. Nenhuma criança escapa ao Édipo! Por quê? Porque nenhuma criança de quatro anos, menina ou menino, escapa à torrente de pulsões eróticas que lhe afluem e porque nenhum adulto de seu círculo imediato pode evitar ser o alvo de suas pulsões ou tentar bloqueá-las”, disse Nasio no seu Édipo/ o Complexo do qual Nenhuma Criança Escapa.
Turbinados pelo ensino de Lacan, Deleuze e Guattari pretenderam detonar o Édipo. No prefácio de 1987 à edição italiana de Mil Platôs (1980), admitem que o grande sucesso do seu O Anti-Édipo (1972) deve muito à época agitada de maio de 68, enquanto a calmaria dos anos 80 responde pela indiferença com que Mil Platôs foi recebido.
Mil Platôs “foi o nosso livro de menor receptividade”, mas é o preferido dos dois autores. Quando se trata de detonar o Édipo, toda piadinha é bem-vinda, o que só mostra a resistência à psicanálise. Faço questão de manter o termo “resistência”, porque constato que ela existe, é um dado de realidade, ou até mesmo do chamado Real lacaniano, já que ele não dá mole a ninguém que pretenda esgotá-lo.
A dupla francesa admite que para além do sucesso aconteceu “um fracasso mais profundo”. Deleuze e Guattari pretendiam denunciar as falhas do Édipo, do “papai-mamãe”, na psicanálise, na psiquiatria, na antipsiquiatria, na crítica literária e na imagem geral que se faz do pensamento construído em grande parte pelas contribuições da psicanálise no século XX.
“Sonhávamos em acabar com Édipo. Mas era uma tarefa grande demais para nós. A reação contra 68 iria mostrar a que ponto o Édipo familiar passava bem e continuava a impor seu regime de choramingo pueril na psicanálise, na literatura e por toda parte no pensamento.” Parece que o filósofo e o psicanalista se associaram no erro de culpar a psicanálise – freudiana, bem entendido – pelo “papai-mamãe” (chegam a ponto de dizer que Freud não sabia nada do cu) e o “choramingo pueril” (desconhecem a criança magnífica da psicanálise), sem o qual simplesmente não há análise, uma vez que o analisante leva justamente a sua criança, o seu infantil para tratamento. Constatar não é prescrever, prova disso é que Freud falou na “resolução” do complexo de Édipo.
“De modo que o Édipo continuava a ser nossa ocupação. Ao passo que Mil platôs, apesar de seu fracasso aparente, fazia com que déssemos um passo à frente, ao menos para nós, e abordássemos terras desconhecidas, virgens de Édipo, que O anti-Édipo tinha apenas visto de longe sem nelas penetrar.”
Estamos falando de penetrações e virgindades, metáforas deliciosas.
A dupla dinâmica – nada a ver com Batman e Robin, ou… pior? – resume assim O Anti-Édipo e seus três temas:
“1º) o inconsciente funciona como uma usina e não como um teatro (questão de produção, e não de representação);
2º) o delírio, ou o romance, é histórico-mundial, e não familiar (deliram-se as raças, as tribos, os continentes, as culturas, as posições sociais…);
3º) há exatamente uma história universal, mas é a da contingência (como os fluxos, que são o objeto da História, passam por códigos primitivos, sobrecodificações despóticas, e descodificações capitalistas que tornam possível uma conjunção de fluxos interdependentes.)”
A ideia do inconsciente como um trabalhador incansável vem de Lacan, pelo menos. A crise da representação foi apontada por Freud e vivida visceralmente na prática, na teoria e na clínica psicanalíticas. Ver A Interpretação de Sonhos, representação é destituída pelo representante da representação, em outras palavras, o significante, termo que faltava a Freud, o que não o impediu de ser também o criador da linguística, segundo o desaforo bem aplicado de Lacan. Sem Freud, sem Saussure.
Deleuze e Guattari estavam num momento de valorização da História, talvez como um contraponto às ideias de matiz hegeliana sobre “fim da história”, artefato ideológico usado como arma de guerra a favor do capitalismo. Ver Fukuyama, hoje arrependido. Ou ainda como contraponto às ideias de matiz estruturalista, que tenderam a esvaziar a História. Até mesmo Lacan entrou nessa, ao dizer que a História é puro pesadelo de que ainda não despertamos, se é que haja algum despertar.
Por que um psicanalista não poderia trabalhar com as duas ideias, tanto história quanto estrutura? Por que um psicanalista não poderia trabalhar segundo a recomendação de Freud, que tratou simultaneamente indivíduo e sociedade, numa lógica de “não há um sem o outro”, numa “oposição inclusiva”? Não se vê bem por que os delírios ou romances, por serem histórico-mundiais, deixariam por isso de ser familiares, como se tivéssemos de obedecer apenas a uma lógica de “oposição exclusiva”, do tipo ou bem isso, ou bem aquilo (já dizia Cecília Meireles que ou isso ou aquilo é a nossa infância da arte).
“O anti-Édipo tinha uma ambição kantiana”, dizem os autores. E aqui sua argumentação torna-se mais forte, um apelo sedutor às ideias “positivas”, de “construção”, de “multiplicidade”, contra as “paixões do negativo”, implicadas nas ideias de “castração”, “incompletude”, “falta”, “falta a ser”.
“Era preciso tentar uma espécie de Critica da razão pura no nível do inconsciente”, dizem. “Daí a determinação de sínteses próprias ao inconsciente; o desenrolar da história como efetuação dessas sínteses; a denúncia do Édipo como ‘ilusão inevitável’ falsificando toda produção histórica.”
Só pra lembrar: foi Freud quem fez a crítica da Crítica da Razão Pura, ao negar que espaço e tempo (formas a priori da sensibilidade para Kant) tivessem alcance universal, já que pelo menos numa instância da vida “psíquica” – justamente no inconsciente – elas deixam de comparecer nos termos propostos pelo filósofo. O inconsciente é atemporal, acrônico, seu espaço é de uma “Outra cena”, nada a ver com a consciência, além de incognoscível, tal como a “coisa em si” kantiana e o “Real” de Lacan.
Deleuze e Guattari: “Mil platôs se baseia, ao contrário, em uma ambição pós-kantiana (apesar de deliberadamente anti-hegeliana)”. E aqui vemos o verdadeiro cavalo de batalha de Deleuze: ele quer porque quer detonar Hegel, tal como indicou outro filósofo, Slavoj Zizek, no seu Órgãos sem Corpos/Deleuze e Consequências. Deleuze inventou a tal de “enrabação filosófica” em que um filósofo pega outro por trás e lhe mete um filho não se opondo, mas levando mui a sério as ideias de sua “vítima”. A isso se reduziria a história da filosofia. Só que Deleuze não teria conseguido fazer a tal saliência com Hegel, daí a sua implicância (“deliberadamente anti-hegeliana”). Zizek por sua vez tenta a mesma manobra com Deleuze, e para saber o que houve o leitor já com um sorriso machadiano nos lábios terá de ler o livro. Fica-se tentado a achar que esses autores (“Freud não sabia o que era o cu”, “enrabações filosóficas”, etc.,) sofriam (gostosamente) de uma fixação anal. Nada contra, pode até ser muito divertido, prazeroso e gozoso, como o próprio Freud foi dos primeiros a mostrar. O que muda é a perspectiva de “seriedade” com que uma ingênua academia nos “leciona” filosofia. Tudo não passa de comédia, no máximo de humor para alívio da dor de existir. E isso na melhor das hipóteses, diante do sinistro em que mergulhamos, pandemias em série na vida e na política.
Voltando à seriedade acadêmica para dela sair: é justo expor o projeto de Deleuze e Guattari, ainda que não tenha feito escola, e talvez justamente pelo fracasso, já que às vezes são o que temos de melhor. É um elogio ao canto, ao cantar, até mesmo ao grito. Belo, por isso. Lá vai:
“O projeto é ‘construtivista’. É uma teoria das multiplicidades por elas mesmas, no ponto em que o múltiplo passa ao estado de substantivo, ao passo que O Anti-Édipo ainda o considerava em sínteses e sob as condições do inconsciente” (todo mundo sabe que em psicanálise não há síntese, no máximo temos a piada sobre o nó borromeano: tudo amarrado em nome de Lacan. Mas todo mundo sabe que Deleuze e Guattari disseram adeus à psicanálise. Ficaram-lhe as marcas, elogiadas por Lacan, mesmo que no fundo não passassem de autoelogio).
“Em Mil platôs, o comentário sobre o Homem dos Lobos (‘Um só ou vários lobos?’) constitui nosso adeus à psicanálise, e tentam mostrar como as multiplicidades ultrapassam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a história, o corpo e a alma” [?!].
“As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade [ Lacan: il y a de l’un, há do um, há um], não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito” [quer ver um deleuziano furioso é falar em sujeito, mesmo que pretendido, como o da psicanálise]. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades [aí, convergência com Lacan]; a suas relações, que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres [onde mesmo?]; a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore) [se filosofia é criação de conceito, como queria Deleuze, rizoma é sua digital]; a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua) aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização” [palavra comprida que distrai].
O sonho de Deleuze/Guattari admite modalidades de ação revolucionária, máquinas de guerra nômades, marginalismos, aparelhos de Estado desapropriados de máquina de guerra, processos de subjetivação (mas não de sujeito) nos aparelhos estatais e guerreiros, e a convergência desses processos no capitalismo (o subtítulo de Mil platôs é “Capitalismo e Esquizofrenia”, associadas essas palavras podem devir máquina de guerra?).
E aqui finaliza a elegância do texto de Deleuze, tão elogiado por Lacan. Os fatores de sua composição jogam livre e esteticamente no ritornelo. “As pequenas cantigas territoriais, ou o canto dos pássaros [aí simpatizo com Deleuze]; o grande canto da terra, quando a terra bramiu; a potente harmonia das esferas ou a voz do cosmo? É isto o que este livro teria desejado: agenciar ritornelos, lieder [um tipo peculiar de canção alemã] correspondentes a cada platô. Pois a filosofia, ela também, não é diferente disso, da cançoneta ao mais potente dos cantos, uma espécie de sprechgesang [canção falada, João Gilberto? Tom Jobim?] cósmico. O pássaro de Minerva (para falar como Hegel) [ué, cadê o deliberadamente anti-hegeliano?] tem seus gritos e seus cantos: os princípios em filosofia são gritos, em torno dos quais os conceitos desenvolvem verdadeiros cantos.”
Em tempos de pandemia e confinamento, recomendo a meus cinco, que digo, quatro, ou três leitores que leiam livros.
Artigo extremamente semiológico. Referências que certamente seus “cinco” leitores terão de conhecer. Que texto exigente. São preciso vários livros e anos de estudo. Obrigada, mestre.
Gostei da ideia de pensar o trabalho do psicanalista com a “oposição inclusiva da história e da estrutura”. Os 5 leitores vão ter que correr atrás de muitos livros para criar rizomas e multiplicidades outras pra recriar essa clínica. Desejo não falta, é guia! 😉