[Coautor: Weiny César Freitas Pinto[1]]
A mutilação genital feminina é um tema pouco abordado na mídia e nos debates acadêmicos em geral, mas sobre o qual é urgente pensar, visando à conscientização e ao combate da prática. Realizada em pelo menos 30 países, acomete todos os anos aproximadamente 3 milhões de meninas e mulheres, que são vítimas desse tipo de violência multifacetada: física, sexual e psicológica. É um ato praticado em diferentes localidades e culturas do mundo, não somente no Oriente Médio e na África – locais aos quais são frequentemente atribuídos estes atos –, mas também na Ásia, nas Américas e na Europa[2].
Trata-se de um problema global, que exige soluções globais. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020), as mutilações são realizadas por culturas que buscam assegurar a virgindade da mulher antes do casamento e a submissão feminina ao matrimônio. Na maior parte das culturas em que isso ocorre, explica-se que a mutilação de partes como o clitóris, por exemplo, serviria para evitar o adultério das mulheres e impedir-lhes a libido, considerada, no caso delas, imoral. Sabemos que, no fundo, o que está em questão é a dominação patriarcal, isto é, a autoridade do homem no casamento e na família.
Estamos diante de um problema que aumenta significativamente sua gravidade quando é relativizado e tratado como uma simples questão cultural. Não podemos, em pleno século XXI, pensar que questões de direitos humanos como esta são simplesmente questões contextuais. Trata-se de um assunto transcontinental e, como tal, deve ser tratado.
Neste ano de 2020, o Brasil e a Arábia Saudita foram os únicos países que votaram contra a atualização de uma resolução da ONU, na convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, que tratava, dentre outros assuntos, sobre educação em saúde e o combate da mutilação genital feminina. Ambos os países se posicionaram contra os termos “educação sexual” e “saúde reprodutiva” que constavam no texto do documento. O governo e a diplomacia brasileira, quando questionados sobre o fato, colocaram-se como meros espectadores, afirmando que não devem interferir nas culturas e crenças de outros países.
[…] O Governo brasileiro ainda fez um pedido para que seja reconhecido o papel de entidades religiosas na formulação de políticas públicas para a defesa das mulheres e da igualdade de gênero (CHADE, 2020).
Aí está um bom exemplo da incoerência de se “tolerar o intolerável”: movimentos ideológicos ultraconservadores sempre fazem uso de uma falsa ideia de liberdade para afrontar direitos e silenciar violências, mascarando sofrimentos e opressões por meio do discurso ideológico culturalista.
Por envolver não somente a dignidade humana, em sentido geral, mas também relações específicas de dominação e exploração de gênero, a mutilação genital de mulheres como condição para a inserção social também está vinculada a essa explícita violação corporal e sexual que configura, sem dúvida, tortura física. Tais razões levaram a ONU (2013) a adotar uma resolução que expressa total intolerância à MGF[3], designando o “Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina”, no dia 6 de fevereiro, estabelecido como forma de conscientização acerca do tema, a fim de buscar apoio popular na luta pela erradicação da prática.
É necessário, para a preservação do caráter virtuoso atribuído ao termo tolerância, estabelecer limites entre o tolerável e o intolerável, determinando-se o que é aceitável ou não. Somente a “tolerância”, em sentido básico, não é suficiente para a construção racional da convivência pacífica e da justiça em sociedade. Isto é, a complexidade de alguns assuntos ultrapassa a lógica binária tolerância/intolerância – como é o caso da MGF – e necessita de outras ferramentas de análise: a empatia, o altruísmo e o respeito à dignidade humana são pilares que sustentam uma perspectiva mais positiva acerca da acepção do termo “tolerância”.
O filósofo Karl Popper, conhecido por seu “paradoxo da tolerância”, afirma que “[…] se estendermos a tolerância ilimitada àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância […]” (POPPER, 1974, p. 289). Isso significa que nenhuma expressão que comprometa ou ameace as instituições sociais e os direitos humanos deve ser tolerada.
Expressões e práticas intolerantes, portanto, necessitam ser inicialmente reprimidas por meio de imposições racionais e científicas, com o apoio da educação institucional e midiática, tal como as Nações Unidas vêm fazendo em seus tratados de defesa das mulheres que, unindo diversos países, criam um compromisso global para lidar estrategicamente com o problema. Contudo, em caso de permanência das ameaças e violações à dignidade humana e aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, estas precisam ser duramente reprimidas com todo engajamento e repulsão possíveis, como no caso de alguns países que já incluíram a MGF em sua legislação penal, tipificando-a como: “ferimentos ou golpes com dolo”, “ataque à integridade física e mental” ou “atos de violência resultantes em mutilação ou deficiência permanente”. Além disso, as leis de proteção da criança e as medidas de proteção do direito civil também são importantes aliados para a eliminação da MGF[4].
Em geral, o termo “tolerância” é compreendido como “suportar aquilo que não agrada”, sendo, portanto, bastante limitado em relação à compreensão do papel que as diferenças exercem nos mais variados contextos. Assim, apesar de inicialmente parecer uma ideia positiva, há nesta percepção de “tolerância” uma interpretação preconceituosa e relativista que resulta em contradições perigosas quando relacionadas unicamente ao contexto ou à cultura.
Quando a ONU declara intolerância às práticas de MGF, ela se refere a uma questão que ultrapassa o limite do contexto, da diversidade cultural, trata-se de uma questão de violação de direitos humanos. Para uma aplicação mais eficiente e racional do conceito, a tolerância não deve ser entendida como uma virtude que atribui ao indivíduo mera posição passiva de compreensão e aceitação, mas, sim, ser utilizada como um princípio de convivência globalizada. É necessário pensar a tolerância de acordo com as especificidades de cada contexto cultural, todavia, sempre seguindo a lógica da razão e da justiça.
Por conseguinte, ser tolerante com as práticas nefastas de mutilação genital feminina é o mesmo que consentir com as estruturas sociais que perpetuam não somente as desigualdades de gênero, mas também as desigualdades sociais e econômicas existentes, tanto nas culturas em que são praticadas quanto no mundo todo, já que a discriminação de gênero e a exploração dos corpos femininos são um fenômeno estrutural das relações humanas que predomina na maioria das sociedades do mundo e tem impacto direto no funcionamento econômico-social.
Infere-se, portanto, que, tratando-se de uma violência tão grave e tão recorrente como é o caso da MGF, a saída mais racional e justa é a aversão a ela e sua criminalização transcontinental, no sentido de ser reprimida mundialmente pelos Estados-nações, por meio da educação em saúde e legislações em defesa das mulheres, de forma a ressaltar a incompatibilidade das discriminações de gênero com a humanização das relações sociais e a liberdade individual.
Desse modo, é necessário exercer a tolerância e o respeito às diferenças visando sempre à pluralidade de contextos e informações, para nutrir de racionalidade o debate público e privado, abrindo espaços de diálogo e compreensão. Em contrapartida, como vimos com Popper, atitudes e ideias expressas que ferem os direitos humanos e/ou o funcionamento de instituições sociais não podem ser toleradas e precisam ser reprimidas para que os elementos racionais e pacíficos da sociedade sigam existindo sem possíveis interferências ideológicas e dogmáticas prejudiciais ao bem-estar humano.
Referências
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Mutilação Genital Feminina (Ficha Técnica). [s.l.], 3 fev. 2020. Disponível em: https://www.who.int/en/news-room/fact-sheets/detail/female-genital-mutilation. Acesso em: 10 dez 2020.
ONU. Resolução 67/146. Intensificação dos esforços globais para a eliminação da mutilação genital feminina, [S. l.], 5 mar. 2013. Disponível em: https://eurocid.mne.gov.pt/sites/default/files/repository/content/event/11634/documents/n1248736.pdf. Acesso em: 10 dez. 2020.
ONU. A Mutilação genital prejudica mulheres e economias. ONU News. 6 fev. 2020. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/02/1703172. Acesso em: 3 dez. 2020.
CHADE, Jamil. Cruzada ultraconservadora do Brasil na ONU afeta até resolução contra mutilação genital feminina. El País. 8 jul. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-09/cruzada-ultraconservadora-do-brasil-na-onu-afeta-ate-resolucao-contra-mutilacao-genital-feminina.html. Acesso em: 3 dez. 2020.
ASSOCIAÇÃO PARA O PLANEAMENTO DA FAMÍLIA (APF). Eliminação da mutilação genital feminina: Declaração conjunta OHCHR, ONUSIDA, PNUD, UNECA, UNESCO, UNFPA, ACNUR, UNICEF, UNIFEM, OMS. Lisboa, 2009. Disponível em: https://www.who.int/eportuguese/publications/mutilacao.pdf?ua=1. Acesso em: 8 dez. 2020.
ONU. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. (Resolução). Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw1.pdf. Acesso em: 9 dez. 2020. POPPER, Karl. Paradoxo da tolerância (Notas ao capítulo 7). In: A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. v. 1, p. 289. Disponível em: http://dagobah.com.br/wp-content/uploads/2017/07/popper-a-sociedade-aberta-vol-1-alt.pdf. Acesso em: 9 dez. 2020
[1] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
[2] Um documento conjunto de diversos órgãos internacionais, incluindo a ONU e a OMS, denominado Eliminação da Mutilação Genital Feminina, afirma que “[…] há registro da prática […] por todo o globo, embora predomine nas regiões do Oeste, Leste e Nordeste da África, em alguns países na Ásia e Médio Oriente, e entre certas comunidades de imigrantes na América do Norte e Europa” (APF, 2009).
[3] Mutilação Genital Feminina.
[4] Cf. APF, 2009, p. 21.
O texto é o quinto da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.
- A Prudência Limita Minha Felicidade?, de Alexandre Barbosa Chagas e Carlos Augusto Damasceno, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/09/a-prudencia-limita-minha-felicidade/.
Parabéns, pelo texto!! Reflexão necessária e urgente. Só acho que é bastante discutível a questão que você menciona sobre não tolerar os que são intolerantes com as instituições sociais. Ora, instituições são formadas por pessoas que detêm interesses, poderes, ideologias, etc., ou seja, as instituições por si mesmas podem preconizar e praticar injustiças, portanto, nem mesmo instituições sociais devem ser toleradas acriticamente, elas mesmas são parte da configuração social que reproduz a desigualdade de gênero, econômica e social.
Muito obrigada, Rafael! Concordo contigo sobre não devermos tolerar as instituições acriticamente. Contudo, meu argumento baseado em Popper era que tolerar questões intoleráveis (que ferem os direitos humanos, por exemplo) podem ameaçar e/ou desqualificar a existência de instituições já consolidadas, principalmente aquelas que servem a favor de nossos direitos mais elementares. Mas, de fato, seu comentário me fez pensar sobre como podemos estender a conscientização dos indivíduos para evitar, ou pelo menos reduzir, as injustiças que infelizmente ocorrem em cenários institucionais. Seguimos na luta! 🙂