[Coautores: Rafael Lopes Batista [1] e Weiny César Freitas Pinto[2]]
No ensaio O mito do contexto, presente em seu livro homônimo, Karl Popper (1902-1994) apresenta ao leitor o conceito de razão crítica ou, ainda, tradição crítica e sua importância para o desenvolvimento científico. Isso ocorre a partir da perspectiva de que a razão crítica pode demonstrar que a tese do contexto – ou seja, a ideia de que é impossível a existência de um diálogo proveitoso, racional, entre pessoas que não compartilham dos mesmos contextos culturais, sociais e teóricos – é equivocada, é um mito. Com que efeito, como e em que medida opera essa importância da razão crítica para o desenvolvimento científico? E qual a sua relação para com a demonstração do caráter equivocado daquilo que se entende por “contexto”?
Por razão crítica compreende-se aquele componente da racionalidade surgido entre os gregos que viviam nas colônias, em particular numa colônia localizada na Ásia Menor, onde, por meio da discussão crítica acerca da natureza (physis) e do cosmos, aqueles que se tornariam os primeiros filósofos buscavam a compreensão (ou explicação) racional dos diversos mitos explicativos que ali existiam. Isso tudo ocorre, principalmente, na cidade de Mileto, localizada na colônia da Jônia. Como argumenta Popper (1996, pp. 61-63), a ciência e a filosofia gregas (e em decorrência disso, a razão crítica) surgem nestes lugares mediante a confrontação e a troca de conhecimentos entre os gregos e outras civilizações.
Desde então, como resultado do choque de culturas que se deflagrou nesse cenário, e com a presença de novos modelos filosófico-teóricos de organização e orientação da natureza (physis) e do cosmos, surgiu o pensamento crítico por parte dos primeiros filósofos, os quais passaram a reformular e a repensar racionalmente as narrativas mitológicas e os modelos cosmológicos de seu tempo. Nesse sentido, o momento de gênese da razão crítica, segundo Popper (1996, pp. 64-67), ocorreu a partir da crítica que Anaximandro, aluno de Tales, ambos filósofos da physis, fez ao modelo cosmológico de seu mestre, modelo este que pressupunha ser a água a origem de todas as coisas e o elemento no qual a Terra encontrava-se suspensa. Anaximandro, ao perceber as incongruências que se mostravam presentes na teoria de Tales, formulou uma nova e mais adequada compreensão da natureza e do ordenamento do cosmos e assim inaugurou uma nova forma explicativa. Em outras palavras, é a partir do confronto de ideias e teorias que se torna possível o surgimento de modelos explicativos mais sofisticados, processo que demanda a utilização da razão crítica como método. No caso de Anaximandro, o princípio ordenador dos cosmos e da natureza passou a ser o Ápeiron, essência infinita, ilimitada e não visível, da qual todas as coisas são feitas.
Em suma, pode-se dizer que a razão crítica dos gregos antigos configurou-se como uma espécie de método científico, pautado pelos seguintes momentos: 1) momento da crítica, no sentido de apontar limites, problemas e insuficiências em uma concepção já formulada e estabelecida; 2) momento da origem de uma nova e aprimorada concepção explicativa; 3) momento em que esta nova concepção se torna novamente objeto de crítica, revisão e aprimoramento e assim sucessivamente, de forma que esse processo manteve-se num constante ciclo de avanço do conhecimento ocidental. Esse método, iniciado por Tales, perpetuou-se no decorrer de ao menos cinco séculos, incentivado principalmente por aquela que viria a ser conhecida como a escola jônica de cosmologia, a qual se orientava por meio dessa tradição crítica, de onde propriamente surgiram a filosofia e os primeiros filósofos ou physiologoi (filósofos da natureza). Foi em meio a esse cenário que, de acordo com Popper (1996, p. 65), se fundamentou o que viria a ser o método científico, método que tornaria possível o avanço da ciência ao longo do tempo.
Podemos agora responder às perguntas levantadas no início deste ensaio da seguinte maneira: o surgimento da razão crítica não teria sido possível sem o choque cultural e civilizacional de outros “contextos” com aquele das colônias gregas, em particular, o daquela localizada na Ásia menor, a Jônia. Sem esse fenômeno, a reorientação, a reformulação e a concepção de novas explicações e o surgimento de outros modelos cosmológicos não seriam possíveis. Isso demonstra então que a perspectiva a partir da qual se instaura a tese do “contexto” mostra-se inviável logicamente, na medida em que foi justamente em decorrência do choque cultural ocorrido entre diferentes contextos (grego e demais) – e da adoção da razão crítica como método – que a filosofia e a ciência realizaram suas primeiras elaborações.
Em relação à sua importância para o desenvolvimento científico, Popper (1996, p. 66-67) afirma que a razão crítica, fora o fato de contribuir decisivamente para aquilo que posteriormente seria o método científico ocidental, possibilitou que nomes como Newton, Copérnico, Galileu e outros pudessem dar continuidade ao aprimoramento prático e teórico da ciência, entendida como ferramenta capaz de auxiliar na compreensão crítica do mundo em que vivemos.
Referências
POPPER, Karl. O Mito do contexto. In: O Mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Trad. Paula Taipas. 1ª Ed. Lisboa: Edições 70, 1996. pp. 55-67.
[1] Professor de Filosofia na rede estadual de educação de Mato Grosso do Sul. E-mail: rafaeb26@gmail.com
[2] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.
O texto é o sétimo da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.
- A Prudência Limita Minha Felicidade?, de Alexandre Barbosa Chagas e Carlos Augusto Damasceno, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/09/a-prudencia-limita-minha-felicidade/.
- Intolerável: a Mutilação Genital Precisa ser Combatida, de Beatriz da Silva de Paula, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/16/intoleravel-a-mutilacao-genital-feminina-precisa-ser-combatida/.
- Relativismo moral em “O Estrangeiro”, de Camus, de Priscila Zanon, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/23/relativismo-moral-em-o-estrangeiro-de-camus/.